Capítulo 2 Diversidades e Direitos Humanos
O sujeito dos direitos é pluridimensional. Assim, há que ser pluridimensional a compreensão de direitos humanos a ser defendida, já que se trata de direitos destes sujeitos. Por isso, uma compreensão que se reivindica libertadora e, sendo libertadora, histórica. Uma construção que implica superação de todos os colonialismos, as monoculturas e as opressões.
Enrique Dussel diz que, “Por natureza, os direitos humanos são históricos” (2015, p, 129). Historicamente eles se estruturam “[...] como ‘direitos vigentes’ e são considerados com base na consciência ético-política dos ‘novos’ movimentos sociais que lutam pelo reconhecimento de sua dignidade negada” (2015, p. 129). Por isso, “Não pode haver a priori, no começo da história, uma ‘lista’ dos direitos humanos” (2015, p. 129). E mais,
“[...] no tempo do decurso da história, nunca se podem descobrir listas de todos os direitos humanos, salvo apenas daqueles que historicamente foram sendo descobertos, reconhecidos e institucionalizados como ‘direitos vigentes’ (nos ‘sistemas do direito’ históricos) e foram sucessivamente repensados com base nos ‘novos’ direitos de cujos conteúdos tomam consciência, em primeiro lugar e sempre, os ‘sem-direito’”
(2015, p. 129).O sujeito de direitos humanos é singularidade (Einzelheit), uma existência humana concreta, a que se constitui como “carnalidade material”, o que se experimenta no nomear a uma pessoa. Se digo João, por exemplo, o que se está é “distinguindo no conjunto do real das coisas inanimadas e dos animais” e, por ser nome próprio, “o estamos reconhecendo como um sujeito concreto, com uma identidade própria, única e exclusiva desse sujeito”. Pelo nomear também
“descobre-se sua realidade (ato da ‘razão prático-material’) como realidade vivente [...] e realidade vivente humana (isto é, como sujeito autoconsciente, autônomo e livre)”
(DUSSEL, 2000, p. 136-137).O singular é situado como parte de coletivos (família, grupos, Estado) nos quais tem exigências específicas como singularidade e como parte destes coletivos. Não há como pensar o sujeito sem que se tome em conta, “sua vida”, que é sempre única e singular; mas, que também é intersubjetividade, o que o constitui como “sujeito comunicativo”, participante de uma comunidade de vida e também participante “num mundo cultural”: “tudo isso quer dizer relação necessária ao modo humano de ser vivente, isto é, de produzir, reproduzir e desenvolver a própria vida como um sujeito individual humano” (DUSSEL, 2000, p. 139-140). A singularidade, portanto, não é fechada sobre si mesma.
A diversidade das expressões indica que não se trata de uma realidade única, nem mesmo unitária ou unificadora. Ela é, antes de tudo, realidade “distinta”: uma vítima não é redutível a outra vítima; um sujeito não é redutível a outro sujeito. Por outro lado, as formas nas quais se apresenta a condição da vítima se “combinam”, transversalizando-se – as feministas negras norte-americanas diriam “interseccionalizando-se” – na concretude de uma singularidade, realizando a unidade da condição de vítima como sujeito vivo. O central é que, para a compreensão crítica da condição da vítima, qualquer perspectiva que exceda sua singularidade é um recorte formal que diz respeito ao modo como se entende a apresentação das condições históricas nas quais aparece. É isto que faz com que a “diversidade não nega a universalidade” mas a “concretiza, enriquece” fazendo que “os diversos e invisíveis ‘rostos’ do outro” sejam descobertos. É necessário “saber articular ‘transversalmente’ em sua natureza alterativa esses rostos”, diz Dussel (2000, p. 567, grifo nosso).
Por “natureza alterativa” Dussel entende “o que há anos, temos denominado de momento analético do método dialético, que parte da possibilidade ‘dis-tinta’, a diversidade alterativa, para encontrar a universalidade na profundidade de cada diversidade, na qual se reflete a particularidade da alteridade dos outros sujeitos sócio-históricos” (2000, p. 568).
A universalidade se revela na “profundidade de cada diversidade” na qual fica refletida a particularidade dos/as outros/as. A universalidade, portanto, está no âmago profundo da diversidade – como pluriversidade. Não é o resultado de soma, nem da composição. Vem do aprofundamento. Em outras palavras, quanto mais se aprofundar a diversidade, mais se chegará à universalidade qua pluriversidade. A subjetividade, portanto, no seu mais profundo, é sempre intersubjetividade; o cada um/a, no profundo, é um/a “todos”/as; o singular, no profundo, é plural. Para usar uma expressão de Dussel: “em cada vítima concreta está a vítima universal, que a revela como epifania dos rostos de todos os rostos particulares” (2000, p. 568).
Por isso é que Rigoberta, assim como qualquer vítima (não como vítima qualquer, mas como vítima singular) é “um ‘rosto’ de todos os ‘rostos’ de todos os Outros invisíveis” (2000, p. 568). E, “no ‘rosto’ de Rigoberta Menchú revela-se transversalmente como a multiplicidade de rostos na ‘mulher’, na ‘indígena’, na ‘mãe terra’ da ecologia, na ‘camponesa’ pobre, na raça ‘morena’, na ‘indígena maia’, na ‘jovem’ sob o peso da gerontocracia, na ‘guatemalteca’, na ‘militante’ da consciência comunitária crítica [...]” (2000, p. 568). Essa compreensão de singularidade impede que se entenda o sujeito de modo unidimensional.
Unidimensionalizar é deformar a realidade e também as formas de ação na realidade, inviabilizando o ser sujeito ético. Não há sujeito unidimensional. Fazer da vítima unidimensional é obra de uma racionalidade que nega a complexidade do seu ser humano como ser humano vivo. A compreensão da vítima como sujeito operada numa racionalidade ética, política e jurídica de libertação abre-se, desde a singularidade, para uma perspectiva de pluridimensionalidade e da pluridiversidade do sujeito, ou seja, para compreender que ser sujeito é ser singular sendo plural e ser plural sendo singular.
Estamos diante de um novo universalismo, um pluriversalismo, que talvez ainda esteja longe do que tem sido a compreensão dos direitos humanos ao longo da história, visto que ainda tem sido por demais entendidos meramente no marco do “direito vigente”. No dizer de Dussel: “Não caímos assim no dogmatismo do direito natural (solução fundacionalista metafísica e inaceitável), nem tampouco no relativismo (todo direito vale por ter-se imposto pela força numa época), ou no mero contingencialismo (não há princípios universais), e sim na conciliação de um universalismo não-fundacionalista, que mostra que os ‘novos’ direitos são aqueles exigidos universalmente (seja em uma cultura, seja para toda a humanidade, segundo o grau de consciência histórica correspondente) para a comunidade política no estado de sua evolução e crescimento histórico” (2015, p. 130).
A proposta de Dussel coloca os direitos humanos mais com luta dos “semdireitos” do que como “direito vigente”. Aqui está o maior desafio para descolonizar a compreensão hegemônica dos direitos humanos e para afirmar uma compreensão libertadora dos direitos humanos.
A diversidade na perspectiva da pluriversidade é uma das realidades que incide com mais força no debate e na ação em direitos humanos. Aqueles/as humanos/as que, ao longo da história, não se enquadravam no “modelo normal e hegemônico” eram tidos por inferiores, menores e eram excluídos/as da vida social e política. Isso significa que a diferença foi usada como forma de opressão e desqualificação. Esta postura está naquela frase que ser repete hoje: “até aceito direitos humanos, mas só para humanos direitos”.
Ela expressa uma história que a humanidade viveu ao longo de séculos e que milhões de seres humanos vivem ainda hoje, uma experiência de desumanização: a mulher era [e em alguma medida ainda é] tida por humana, mas não com a mesma capacidade de força e autodeterminação que o macho, por isso subordinada, governada e vocacionada ao lar; a criança foi tida [e em alguma medida ainda é] por humana, mas ainda não completamente, por estar em desenvolvimento, por isso completamente sob o império do adulto; o escravo era [e em alguma medida ainda é] um ser humano, mas somente com a capacidade de entender as tarefas a eles impostas ou culpado por sua própria condição por resistir; os indígenas eram [e em alguma medida ainda são] humanos, mas não aptos da governar a si mesmos e nem mesmo para o trabalho, mesmo que pudessem ser convertidos; pessoas com deficiência, com o próprio nome diz, tidas por humanas, mas em condição inferior em eficiência, não poderiam [e em alguma medida ainda não podem] participar ativamente da vida econômica e social; estrangeiros, refugiados e apátridas [eram e ainda são], humanos, mas incompreensíveis, não membros de clãs conhecidos, por isso não participantes da vida nacional, sem cidadania, sem “direito a ter direitos”; homossexuais, [eram e ainda são] tidos por humanos, mas doentes e depravados, com necessidade de cura; loucos e doentes mentais, [eram e ainda são] tidos por humanos, mas inábeis para a convivência, confináveis; prisioneiros, humanos condenados por malfeitos, [eram e continuam sendo] devedores da sociedade e recalcitrantes irrecuperáveis; enfim, a lista é imensa e, infelizmente, nos dias atuais se continua mais acrescentando a ela do que trabalhando para que seja desfeita. Nela está um sentido contraditório e hierarquizado do que significa “humano”: há um “humano” que parece não caber no humano; ou parece que há humanos mais humanos que outros!
Há quem acredite que é possível defender direitos humanos somente para certos tipos de seres humanos, os “de bem”. Essa ideia de querer separar as pessoas, distinguindo aquelas que são boas das que não são é um discurso falso. Pior, a história mostra em que isso dá: foi isso que justificou o totalitarismo do nazismo e do fascismo que matou milhões de judeus, foi o que justificou a escravidão dos negros africanos na América e no Brasil; é isso que continua justificando a discriminação dos negros, das mulheres, dos homossexuais.
São pensamentos que acham que há certos tipos de gente mais gente do que os/as outros/as é que levaram e continuam levando ao desrespeito às pessoas, à falta de reconhecimento e de compromisso com os direitos humanos. Não se pode invocar os direitos humanos de uns poucos, por melhores que sejam, contra os direitos dos/as outros/as, com qualquer argumento, sob pena de transformar direitos em conteúdo que depõe contra os seres humanos. Daí porque, os direitos humanos não são somente para os “humanos direitos”. Eles são direitos de todos os seres humanos simplesmente porque são humanos.
Este tipo de posição advoga o relativismo dos direitos humanos. Ou seja, os direitos humanos não são para todos e todas. São para quem os merece, para quem faz por merecê-los, para aqueles/as que são empreendedores/as de si mesmos, para aqueles/as que não se acomodam. Enfim, discursos e práticas que separam humanos dos humanos.
Se o universalismo dos direitos humanos pode ser problemático por abrir-se para patrocinar ações imperialistas e muitas experiências de repressão ao longo da história, ainda assim, é exatamente em nome do universalismo que se pode defender a diversidade e inclusive criticar as práticas cruéis, desumanas e fundamentalistas que usam os direitos humanos contra os seres humanos.
Raimon Panikkar faz uma crítica concreta e uma proposta consistente, a interculturalidade, o “imperativo filosófico do nosso tempo”. Ele diz que vivemos hoje uma “dupla tentação”: de um lado o monoculturalismo e de outro o multiculturalismo. Alternativamente a ele propõe a interculturalidade como ação, como diálogo intercultural. Segundo ele, este tipo de ação é mais complicado do que transplante de coração. Para construi-la é preciso
“[...] cavar até encontrar um solo homogêneo ou uma problemática semelhante; devemos buscar o equivalente homeomórfico [...] que é um tipo de ‘analogia funcional existencial’”
(2004, p. 209).Ou seja, se trata de buscar uma convergência no que pode haver de comum no meio da diferença.
Mais do que ideias e conceitos, trata-se de buscar sensibilidades, símbolos, capazes de aproximação. Isto porque, segundo Panikkar, mesmo que não existam valores transculturais visto que são contextuais, “pode haver valores interculturais”, o que não significa “avaliar um construto cultural a partir das categorias de outro”. O que propõe é a “[;] tentativa de compreender e criticar um problema humano específico com as ferramentas de compreensão de diferentes culturas envolvidas”, isso de modo que “ao mesmo tempo, na consideração temática de que a própria consciência e, mais ainda, a formulação do problema, já são culturalmente condicionadas” (2004, p. 221). Isto vale também para os direitos humanos, o que, para o caso significaria “examinar o possível valor intercultural da questão dos direitos humanos” (2004, p. 221).
O diálogo intercultural é, segundo Panikkar, “a maneira de tratar um conflito pluralista”. Ele “não consiste num esforço para convencer o outro e nem mesmo no processo dialético, mas em um diálogo dialógico” (1990, p. 41, tradução nossa). Este diálogo haveria de conduzir a “[...] uma abertura mútua para os interesses do outro, à busca de participar de algo comum; carisma, dificuldade, suspeita, orientação, inspiração, luz, ideal, ou qualquer valor maior que ambas as partes reconhecem e que nenhuma das duas controla (1990, p. 41). Para Panikkar,
“O diálogo dialógico é mais arte do que ciência, implica techné e praxis, assim como gnòsis e theoria. A dificuldade consiste em reativar tudo a cada vez, mesmo quando uma das partes se recusa a entrar num tal tipo de relação”
(1990, p. 41, tradução nossa).Segundo Panikkar: “Existe um monoculturalismo sutil, mesmo que bem intencionado” (1996, § 78, tradução nossa). Ele “Consiste em admitir um grande número de diversidades cultuais, porém sobre o fundo de um único denominador comum” (1996, § 78). Ou seja, “Postula-se, então, uma razão universal e, portanto, comum, e uma inteligibilidade única; assim como se vê com dificuldade a possibilidade de prescindir das categorias, kantianas ou não, de espaço e tempo” (1996, § 78, tradução nossa).
Ele também dirá que “A outra tentação aludida provém do extremo oposto que denominamos multiculturalismo (1996, § 88, tradução nossa). Para Panikkar, “o multiculturalismo é impossível”. Ele reconhece o que chama de “um pluriculturalismo atomizado e separado, isto é, uma existência separada e respeitosa entre diversas culturas, cada uma no seu mundo” (1996, § 88). Isso significa que
“Teríamos assim a existência de uma pluralidade de culturas sem conexão entre si. Porém, o que é manifestamente impossível é a coexistência desta diversidade fundamental em nosso mundo atual”
(1996, § 88, tradução nossa).Enfim, para dialogarmos com outra perspectiva de pensamento, de Franz Hinkelammert, a questão é que “se a sociedade não dá lugar a todos, não terá lugar para ninguém. Se quisermos dar ao conjunto dos direitos humanos enquanto direitos da vida humana uma expressão sintética, esta será: um mundo onde caibam todos, a natureza inteira incluída” (2003, p. 354, tradução nossa). Ou seja, “Somente um sistema no qual é sustentável a vida humana pode ser um sistema sustentável” (2003, p. 354). Dizendo de outro modo,
“Que não se pode viver sem que todos vivam é, por um lado, um postulado da razão prática e, por outro, determina uma práxis. É a práxis correspondente aos direitos humanos da vida humana”
(2003, p. 354-355, tradução nossa).E segue Hinkelammert: “Trata-se de reivindicar-se como sujeito [não de sacrificar-se pelo outro], o que não pode ocorrer sem reivindicar ao outro” (2003, p. 359, tradução nossa). Para ele, “Desta reivindicação nasce a solidariedade enquanto práxis porque, ao reivindicar-se como sujeito a pessoa se reivindica em conjunto com os outros. O outro está em mim; eu estou no outro. Esta intersubjetividade do sujeito [...]” (2003, p. 359). Enfatiza ao dizer “É um ser para a vida não um ser para a morte [...]”. Para Hinkelammert ‘Não é possível a validade de qualquer valor e, portanto, também dos direitos humanos, se não voltamos a descobrir a referência a este “aquele” [o que torna possível a vida humana]” (2003, p. 359, tradução nossa).
Franz Hinkelammert entende que “assegurar os direitos humanos é um projeto de vida, um estilo de vida para cada um e também para a própria sociedade”. Ele alerta que “não é qualquer sociedade que pode assegurar os direitos humanos, aliás faz falta estruturar a sociedade de maneira que seja possível assegurá-los”. Para que isso possa acontecer é preciso “viabilizar uma sociedade que seja capaz de enfrentar as violações dos direitos humanos num grau suficiente para que seja respeitada a integralidade da vida humana em suas condições de possibilidade”, e uma sociedade comprometida com os direitos humanos precisa “intervir na lógica real da ação direta para poder submetê-la à vigência dos direitos da vida humana. Estes direitos têm que ser reconhecidos como a base de toda vida humana que necessariamente inclui a vida da natureza externa ao ser humano” (2003, p. 340-341, tradução nossa).
Ele é enfático ao dizer que “se a sociedade não dá lugar a todos, não terá lugar para ninguém. Se quisermos dar ao conjunto dos direitos humanos enquanto direitos da vida humana uma expressão sintética, esta será: um mundo onde caibam todos, a natureza inteira incluída [...] Somente um sistema no qual é sustentável a vida humana pode ser um sistema sustentável [...] Que não se pode viver sem que todos vivam é, por um lado, um postulado da razão prática e, por outro, determina uma práxis. É a práxis correspondente aos direitos humanos da vida humana” (2003, p. 354-355, tradução nossa). Por isso é que
“trata-se de reivindicar-se como sujeito [não de sacrificar-se pelo outro], o que não pode ocorrer sem reivindicar ao outro. Desta reivindicação nasce a solidariedade enquanto práxis porque, ao reivindicar-se como sujeito a pessoa se reivindica em conjunto com os outros. O outro está em mim; eu estou no outro. Esta intersubjetividade do sujeito – não entre sujeitos, senão de todos enquanto sujeitos – é o ser que caiu no esquecimento do ser. É um ser para a vida não um ser para a morte [...]. Não é possível a validade de qualquer valor e, portanto, também dos direitos humanos, se não voltamos a descobrir a referência a este “aquele” [o que torna possível a vida humana]”
(2003, p. 359, tradução nossa).