Capítulo 3 Vulnerabilidades e Violações
A “vulnerabilidade” vem se constituindo num recurso amplamente utilizado para fazer referência a determinadas situações nas quais se encontram seres humanos que já não conseguem fazer frente aos riscos do ambiente no qual estão inseridos. Usada de modos muito diversos e controversos, a questão é saber se seu uso pode conter a possibilidade de ações e medidas estruturais ou se está mais afeita a medidas paliativas de atenção protetiva. Também interessa saber até que ponto pode oferecer alternativas para que situações graves de violações de direitos humanos, que são profundamente excludentes e vitimizadoras. Enfim, saber se são adequadamente tratadas de modo a exigir mudanças transformadoras sustentadas e que não colaborem em reformismos colaborativos, ainda que não intencionais, e caiam na responsabilização das próprias vítimas por sua condição.
A “vulnerabilidade social” é uma abordagem que está cada vez mais presente em documentos de políticas públicas nos últimos anos. Também marca presença significativa em documentos de direitos humanos. Na Declaração e no Programa de Ação da II Conferência Mundial de Direitos Humanos (ONU, Viena, 1993)4 está em dois parágrafos (§ 24 e § 67). Aparece na primeira parte do documento, onde trabalha com a ideia de “grupos vulneráveis”, sendo listados particularmente os “trabalhadores migrantes” como parte deles. Também faz uma afirmação mais geral, falando de “setores vulneráveis”, na qual diz que os “Estados têm a obrigação de criar e manter mecanismos nacionais adequados, particularmente nas áreas de educação, saúde e apoio social, para promover e proteger os direitos de setores vulneráveis de suas populações e garantir a participação de pessoas desses setores na busca de soluções para seus problemas” (§ 24, grifo nosso). Volta a usar explicitamente a terminologia no item “c” que trata de
“Cooperação, desenvolvimento e fortalecimento dos direitos humanos” onde insere a necessidade de enfatizar medidas para “proteger grupos vulneráveis” e o faz junto com medidas para “fortalecer instituições de direitos humanos [e] promover uma sociedade civil pluralista”
(§ 67).Há muitas possibilidades e definições deste termo. Sem condições de uma revisão mais ampla das referências sobre o tema, tomamos como suporte principal para este estudo aquela feita por Gustavo Busso (2001)5. Ele entende vulnerabilidade como “um processo multidimensional que conflui no risco ou probabilidade do indivíduo, da família ou da comunidade de ser ferido, lesado ou danificado ante mudanças ou permanência de situações externas e internas” (2001, p. 8, tradução nossa). O mesmo autor diz que a vulnerabilidade se expressa como “fragilidade e indefesa ante mudanças do entorno”, como “desamparo institucional” pelo Estado; como “debilidade interna” para responder e aproveitar oportunidades; e como “insegurança” que paralisa, incapacita e desmotiva. Ele também entende que a noção de vulnerabilidade “tem como potencial contribuir para identificar indivíduos, famílias e comunidades que, por sua menor disponibilidade de ativos e baixa diversificação de estratégias, estão expostos a maiores níveis de risco em razão de alterações significativas nos planos sociais, políticos e econômicos que afetam suas condições de vida” (2001, p. 23, tradução nossa).
A abordagem da vulnerabilidade social data dos anos 19906 e surge do contexto dos debates e estudos da realidade para compreender as situações de falta de acesso a recursos, considerando as críticas aos limites dos enfoques baseados na pobreza, na marginalidade (muito usado nos anos 1960), e na exclusão social. Para um grupo de estudiosos, esta abordagem pretende se diferenciar das anteriores. Para outros, a consideram complementar a elas, já que em todas as abordagens estaria presente a ideia de que tanto pobres, quanto marginalizados, excluídos e vulneráveis estariam numa situação de “desvantagem social”, pela sua condição de não conseguir se inserir de forma adequada ao conjunto das oportunidades sociais7. Seu uso foi particularmente impulsionado por organismos internacionais como Nações Unidas (ONU), Banco Mundial e Cepal, entre outros.
A questão de fundo é que a noção de vulnerabilidade, assim como as demais, parece não dialogar adequadamente com um enfoque baseado em direitos humanos. Partir da noção de direitos humanos levaria a uma outra perspectiva de análise da situação. Primeiro, porque implicaria em considerar que os seres humanos são sujeitos/as de direitos humanos. Segundo, porque, na condição de sujeitos/as de direitos, não estão fora do sistema do direito, ainda que ele não os tenha realizado efetivamente e estejam “sem direitos”, o que remete para pensar a necessidade de uma crítica profunda a este sistema que, ex-clui (fecha para fora) ou inclui excluindo. Terceiro, que na condição de sujeito/a de direitos, as reivindicações dos “sem direitos” não estão só para serem legitimadas e “legalizadas” e sim para serem realizadas. Daí porque, sujeitos/as de direitos não estão só em condição de vulnerabilidade, nem mesmo são vulneráveis. São vítimas reais e/ou potenciais, atuais ou virtuais, de violações de direitos e todos os riscos (perigos e ameaças) que se lhes apresentam no processo de realização dos direitos humanos não são somente fatores de vulnerabilização, mas de efetiva vitimização. Este conjunto de condições torna a abordagem da problemática desde os direitos humanos mais complexa ainda e ultrapassa, portanto, à medição da capacidade de uso de ativos disponíveis para aproveitar oportunidades nem sempre acessíveis, mesmo considerando a complexidade das multiplicidades implicadas.
As ferramentas da abordagem desde a vulnerabilidade, a pobreza, a marginalização e a exclusão podem oferecer elementos analíticos para a compreensão e o enfrentamento das situações, mas estão aquém de oferecer uma abordagem que ponha na centralidade a perspectiva de que os/as implicados/as são sujeitos/as de direitos vítimas de violação de direitos, o que resulta na vitimização desses/as sujeitos/as de direitos. Um/a sujeito/a cujos direitos estão violados não é somente excluído/a, marginalizado/a, vulnerável, pobre. Ele/a é vítima de uma dinâmica que despotencia sua condição humana, ainda que não lhe retire e nem possa lhe suprimir a dignidade como valor próprio. A potência maior do/a sujeito/a de direitos está exatamente aqui, na dignidade como valor próprio. Ela é que mantém a possibilidade de ignição potencializadora, “empotenciadora”, capaz de colaborar para que aquele/a sujeito/a violado/a, vitimizado/a, possa encontrar, com apoio do reconhecimento e da responsabilidade dos/as outros/as, mas com sua própria participação direta emancipada e emancipadora, as condições para ir “libertando-se”.
A superação da violação exige a transformação profunda de todas as variáveis que lhe são potencializadoras, ainda que medidas protetivas possam ser realizadas ao modo “redução de danos” ou mitigação – sempre insuficientes e, por vezes, talvez, inadequadas. A consistência à luz dos direitos humanos não pode admitir que o enfrentamento da violação seja feito com alguma violação “aceitável”, ou mesmo aceite que o “sacrifício” de algum direito seja razoável, em nome da preservação da vida ou de outros direitos. O risco (perigo e/ou ameaça) é que precisa ser afastado, não o/a sujeito/a de direitos, ainda que temporariamente se possa precisar que o/a sujeito/a seja retirado desse lugar e posto noutro como forma de proteção, sobretudo na iminência de sua eliminação. Preservar a vida é criar condições para que ela tenha sua produção, reprodução, manutenção e desenvolvimento, nas melhores condições. Tudo o que não for para realizar estas possibilidades, transformando-a em realidade efetiva, factível, não colabora para o enfrentamento do risco, da ameaça e dos perigos.
No contexto do trabalho que desenvolvemos sobre “pedagogia da proteção” em parceria com a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH)8 sustentamos que
“em sentido geral, dos direitos humanos, pensar o risco, é compreender as contradições e insuficiências sistêmicas de promoção de condições para que todos e cada ser humano se realize como ser humano com direitos, para que sua dignidade seja vivida cotidianamente e em todas as suas dimensões, enfim, para que possa reproduzir sua condição de sujeito de direitos humanos efetivamente”
(2017, p. 23).Também consideramos que, por outro lado, “pessoas concretas e grupos não estão em condições de autoproteção e, por fatores internos ou externos, estão necessitantes de algum tipo de atenção e proteção, sem o que tornam-se potencialmente ou efetivamente vítimas de violação de direitos humanos” (2017, p. 23). Alertávamos para a necessidade de que a proteção não levasse “à sobrevitimização e à não efetivação de direitos, rompendo com o princípio da interdependência e a indivisibilidade dos direitos humanos” (2017, p. 24). Significa dizer que se não se tomar isso em conta, o que pode resultar da “proteção” é a “negação prática na vida concreta e singular, na corporeidade, cuja dignidade será tratada como integralidade ou como cisão que dá margem para escolhas seletivas e secundarizadoras de direitos” (2017, p. 24). Afirmamos que, num contexto de direitos humanos, a ação é “parte de um processo amplo e complexo de proteção da singularidade da dignidade de uma pessoa concreta” que “não haveria de abdicar de nenhum de seus direitos humanos, nenhum, sob pena de ver transformada a pessoa protegida em alguém a quem se haveria de penalizar” (2017, p. 24).
- 4
- Versão disponível em http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Sistema-Global.-Declara%C3%A7%C3%B5es-e-Tratados-Internacionais-de-Prote%C3%A7%C3%A3o/declaracao-e-programa-de-acao-de-viena.html. Ver no texto
- 5
- Gustavo Busso (2001, p. 37-38) faz um quadro com as diversas abordagens sobre o tema. Ver no texto
- 6
- Os primeiros usos vêm das contribuições de Glewwe y Hall (1995; 1998). Ver no texto
- 7
- A leitura parte do princípio de que haveriam oportunidades e que o problema é de que certos grupos não se inserem de modo adequado nelas, remete à centralidade da inadequação dos que não as acessaram, sem discutir a qualidade ou suficiência das oportunidades, ou mesmo tudo o que se poderia esperar para além delas; ademais, haveria que se estabelecer diferentes condições ou níveis de integração, resultantes também do nível de integração: pobreza, extrema pobreza, exclusão parcial, exclusão total, vulnerabilidade estável e permanente, vulnerabilidade temporária e recente, entre muitas outras. Ver no texto
- 8
- Ver “Sentido da proteção à luz dos direitos humanos. Achegas de subsídio para a construção de uma Pedagogia da Proteção na prática do Provita” (2017), em parte transcrito doravante, neste item. Ver no texto