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Capítulo 9 Indústria Farmacêutica

9.1. Introdução

O uso de drogas para aliviar dores e evitar a morte já era uma prática comum nas culturas primitivas. Porém, esta prática estava diretamente ligada à mística e as superstições de cada civilização, que normalmente associavam às causas das doenças a ação de maus espíritos. O papiro de Ebers proveniente das civilizações egípcias, conforme mostrado na Figura 9.1 é uma das mais antigas fontes das escritas médico-farmacêuticas, datada de 1550 a.C. Ele contém referências quantitativas que descrevem mais de 7000 substâncias medicinais, incluindo produtos vegetais, minerais e animais, contabilizando mais de 800 fórmulas. Alguns destas substâncias, tais como o enxofre (S), a magnésia (hidróxido de magnésio, Mg(OH)2) e a soda (hidróxido de sódio, NaOH), ainda aparecem nas farmacopéias contemporâneas.

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Figura 9.1. Papiro de Ebers. Reprodução do Atlas zur Altaegyptischen Kulturgeschichte, publicado em Leipzig em 1936.

A racionalização do conhecimento farmacológico associada ao uso de terapias que se contrapunham a mística popular, só foi possível com os gregos, por meio dos trabalhos de Hipócrates e Galeno. Já os primeiros experimentos laboratoriais e clínicos se deram com Paracelso (considerado o “pai” da Quimioterapia) no Século XV. Entretanto, a medicina experimental só ganhou consistência no Século XVIII, com os trabalhos em paralelo de Bernard, Magendie e colaboradores, na França, e de Liebig e seus discípulos, na Alemanha.

O desenvolvimento da pesquisa farmacêutica moderna teve início em 1881, com o estabelecimento da divisão científica da Eli Lilly & Co., uma das maiores companhia farmacêuticas da época. Ademais, a carência de drogas anestésicas e sedativas tais como o veronal e a novocaína, durante a Primeira Guerra Mundial, acelerou a expansão da indústria farmacêutica e a produção em larga escala de substâncias químicas sintéticas. Contudo, a indústria farmacêutica apresentou um caminho paralelo com a indústria química clássica desde o início do Século XIX até metade do Século XX. Esse vínculo só começou a estreitar após a Segunda Guerra Mundial, quando a biotecnologia passou a ter papel fundamental na produção de fármacos. As duas décadas seguintes apresentaram um crescimento estrondoso da indústria farmacêutica associada ao progresso da medicina e ficaram conhecidas na História como a época das novas drogas. Essas novas drogas eram mais eficientes e saiam diretamente dos laboratórios de investigação científica para os hospitais e consultórios médicos.

Atualmente, a descoberta de novas drogas é uma tarefa complexa, que pode durar de dois a dez anos. Além disso, esse processo envolve a participação conjunta da indústria com outras entidades, tais como: laboratórios, institutos de pesquisa, universidades e hospitais. Como veremos no decorrer deste capítulo, essas entidades agregam conhecimentos das ciências químicas, farmacológicas, médicas e biológicas para produzir os mais diversos tipos de produtos farmacêuticos.

9.2. Classificação dos produtos farmacêuticos

Na grande maioria dos países desenvolvidos e em desenvolvimento, os produtos farmacêuticos chegam ao público em conformidade com as leis de medicamento vigentes, nas esferas federais e estaduais. É uma prática legal comum a emissão de receitas por parte de profissionais licenciados, tais como médicos, dentistas e veterinários, para proporcionar à venda de medicamento a população em estabelecimentos registrados e por farmacêuticos. Porém, algumas drogas não precisam de receita, sendo vendidas diretamente ao consumidor.

Assim como a maioria dos produtos químicos, os produtos farmacêuticos podem ser classificados pela utilização, pela estrutura química ou pelas reações químicas envolvidas em sua produção. Desta forma, os principais produtos farmacêuticos são classificados da seguinte forma:

1. Produtos farmacêuticos vendidos sob prescrição médica, exemplos:

  • Valium
  • Librium
  • Premarin
  • Digoxin
  • Cleocin
  • Aldorin
  • Triavil
  • Gantrisin
  • Darvon

2. Quanto ao uso terapêutico, exemplos:

  • Tranquilizante
  • Anticoncepcional
  • Sedativo
  • Analgésico
  • Anti-histamínico
  • Diurético
  • Antibiótico
  • Barbiturato
  • Hormônio

3. Quanto à conversão química envolvidas em sua produção, exemplos:

  • Alquilação
  • Halogenação
  • Extração
  • Carboxilação
  • Oxidação
  • Hidrogenação
  • Condensação
  • Sulfonação
  • Desidratação
  • Esterificação

No entanto, para produção individual em larga, a classificação pela conversão química é a mais empregada e, portanto, será a única focada neste capítulo.

9.3. Processos de conversão química

Dentre as indústrias de processos químicos, a indústria farmacêutica é a que apresenta a maior diversidade de etapas e estágios envolvidos em seus processos de produção. Tal diversidade se deve a complexidade apresentada pela estrutura química de alguns medicamentos, que por sua vez está diretamente relacionada com a complexidade ainda maior, apresentadas pelas doenças e deficiências que eles se propõem a curar.

Na antiguidade, a maioria dos produtos usados como medicamentos por homens e animais era derivada de vegetais e, portanto, apresentavam baixa pureza. No entanto, para aumentar a eficiência e o princípio ativo de cada medicamento, as décadas iniciais da indústria farmacêutica moderna dedicaram-se a separar e purificar os produtos individualmente extraídos das plantas e animais. Atualmente, os métodos extrativos foram aprimorados pelo uso de novos procedimentos, equipamentos e solventes especializados. Por outro lado, como foi visto anteriormente, o aumento da demanda e o grande investimento devotado a pesquisa e desenvolvimento da indústria farmacêutica durante o Século XX, proporcionaram uma substituição de muitas drogas oriundas das extrações de produtos naturais por produtos químicos sintéticos.

A complexidade dos processos de fabricação dos fármacos também dificulta a definição de qual etapa de conversão química deve ser usada para classificar a síntese de uma substância química, além disso, a infinidade de drogas presentes no mercado inviabiliza uma descrição completa de cada processo produtivo. Desta forma, a seguir serão apresentadas apenas as principais conversões químicas envolvidas na produção de algumas drogas fabricadas pela indústria farmacêutica, com destaque para as que apresentam o maior valor agregado, maior volume de produção e melhor processo ilustrativo.

A alquilação é definida como um processo de introdução de grupos alquil ou aril (–R) por reações de substituição ou adição, em compostos orgânicos. São considerados três tipos de processos, segundo a forma de ligação que se efetua:

O-alquilação: substituição de um hidrogênio em um grupo hidroxi de alcoóis ou fenóis;

N-alquilação: substituição de um hidrogênio ligado a um átomo de nitrogênio;

C-alquilação: substituição de um hidrogênio em hidrocarbonetos.

Dentre os processos de alquilação presentes na indústria farmacêutica, podemos destacar o da síntese do barbital. O barbital é um ácido dietilbarbitúrico da classe terapêutica dos sedativos e hipnóticos, vendido com o nome comercial de veronal. Ele é um dos mais antigos barbituratos de ação demorada, sendo sintetizado a partir do malonato de dietila pelos seguintes mecanismos de reações químicas esquematizadas na Figura 9.2.

fig-9-2
Figura 9.2. Esquema de reações químicas para a preparação de Barbital.

Carboxilação

A carboxilação é definida como um processo de introdução do grupamento carboxila (–COOH) por reações com dióxido de carbono (CO2), em compostos orgânicos. Ela é bastante empregada na produção do ácido salicílico e seus derivados (aspirina, salol, salicilato de metila). A síntese destes compostos se dá a partir de uma reação de carboxilação conhecida como reação de Kolbe-Schimitt esquematizada por meio do mecanismo reacional mostrado na Figura 9.3.

fig-9-3
Figura 9.3. Esquema de reações químicas para a preparação do Salicilato de metila.

Condensação

Outra conversão química muito importante devido ao seu emprego na fabricação de inúmeros produtos farmacêuticos que apresentam estruturas diversas em sua composição é a condensação. A condensação é uma reação química em que duas moléculas se combinam para formar uma única molécula, descartando ou não outra molécula menor durante o processo.

Destaque especial é dado à fenolftaleína, um composto amplamente usado como purgativo, e que também é bastante conhecido na química analítica, especialmente na análise volumétrica, por ser empregado como indicador do ponto final em titulações ácido/base. Ele é produzido pelo esquema reacional apresentado na Figura 9.4.

fig-9-4
Figura 9.4. Esquema de reações químicas para a preparação da Fenolftaleína.

O produto da reação de condensação é adicionado ainda aquecido em água fervente e posteriormente fervido. Em seguida, o condensado é dissolvido em soda cáustica (NaOH) quente diluída e precipitado com ácido acético (H3COOH). Por fim, ele é purificado por cristalização a partir de um álcool e filtrado com carvão ativo.

Desidratação

A reação de desidratação é um tipo especial de condensação onde, durante a combinação de duas moléculas se descartada uma ou mais molécula de água (H2O).

Para exemplificar a desidratação será apresentada a seguir a síntese do éter. Esse composto é normalmente usado como solvente e, quando purificado, é usado na farmacopéia como anestésico. O processo de fabricação do éter é bastante simples e se baseia na ação desidratante do ácido sulfúrico, conforme reações químicas apresentada na equação 9.1:

fig-9-5
equação 9.1

Esterificação (Acetilação)

A esterificação é uma reação química reversível na qual um ácido carboxílico reage com um álcool produzindo éster e água. A esterificação da função fenol do ácido salicílico com anidrido acético, em presença de gotas de ácido sulfúrico como catalisador é conhecida como acetilação e é a conversão química que serve de base para produção do ácido acetilsalicílico (AAS). A reação química de síntese do ácido acetilsalicílico é apresentada na equação 9.2.

fig-9-6
equação 9.2

Esse fármaco é conhecido comercialmente como aspirina e, certamente, é o produto farmacêutico mais vendido no mundo. O ácido acetilsalicílico é empregado como antipirético e analgésico e pode ser ainda usado contra febre reumática aguda e gota.

Halogenação

A halogenação é uma reação química onde um átomo de hidrogênio é substituído por um átomo de halogênio, ou seja, essa conversão química pode também ser definida como uma reação química que incorpora um átomo de halogênio em uma molécula específica.

Destaque especial é dado à substituição do átomo de hidrogênio por uma molécula de cloro. Essa halogenação é conhecida como cloração e é amplamente usada na produção de alguns intermediários usados na síntese de fármacos, como o cloreto e o brometo de etila. Porém, em poucos casos o cloro aparece na composição final do fármaco. Um destes casos está presente na produção do clorofórmio, um solvente orgânico que foi bastante usado no passado como anestésico, mas que hoje é mais empregado na análise química e como preservativo, durante a percolação aquosa de drogas vegetais. A reação química de síntese do clorofórmio é representada pela equação 9.3.

fig-9-7
equação 9.3

Oxidação

São denominadas reações de oxirredução (ou redox) todas as reações químicas que envolvem a transferência de elétrons. Assim, quando um composto orgânico reage com uma espécie oxidante ou redutora pode ocorrer uma reação do tipo oxirredução. Quando o elemento químico oxigênio (O) é o agente oxidante em questão e o aumento do número de oxidação ocorre nos átomos de carbono do composto orgânico que originará o fármaco, essa reação é conhecida como oxidação. A reação de oxidação pode ser ilustrada pelo esquema reacional de produção da isoniazida, um fármaco pertencente ao grupo dos antibacterianos que é usado em conjunto com outros medicamentos para o tratamento da tuberculose.

A isoniazida é produzida pela oxidação da 4-Metilpiridina, de acordo com o esquema reacional representado pela equação 9.4.

fig-9-8
equação 9.4

Sulfonação

A sulfonação é uma conversão química empregada na produção de diversas sulfonamidas (sulfanilamida, sulfadiazina, sulfasuxidina, sulfaguanidina e sulfatiazol). Dentre elas a sulfadiazina é a única sulfonamida que apresenta utilidade terapêutica, com ação sistêmica e antibactericida. A Figura 9.5 apresentada as reações químicas de sulfonação e condensação usadas para a síntese da sulfadiazina:

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Figura 9.5. Esquema de reações químicas para a preparação de Barbital.

Fermentação

Como foi mencionado logo no início do capítulo, após a Segunda Guerra Mundial a biotecnologia passou a ter papel fundamental na produção de fármacos. Deste modo, a indústria farmacêutica passou a empregar os processos biológicos dos vegetais e/ou animais, especialmente dos microorganismos na produção de medicamentos. Esses microorganismos podem crescer em condições controladas, para produzir diversas substâncias químicas fundamentais e muitas vezes complexas, tais como: antibiótico, produtos biológicos (vírus, soro terapêutico, toxina, antitoxina, etc.), hormônios esteroides e vitaminas. A tecnologia de fermentação envolvida na produção destes compostos já foi citada no Capítulo 8 e, portanto, não será abordada novamente.


Atividade 9.1

Pesquise na literatura sobre o processo de fabricação do ácido acetilsalicílico, em seguida apresentar um resumo de no máximo 20 linhas, destacado sua principal conversão química.

9.4. Construindo e fixando o conhecimento

1. Faça uma lista dos principais fatos que marcaram o desenvolvimento da indústria farmacêutica moderna.

2. Atualmente, como podem ser classificados os produtos farmacêuticos?

3. Descreva três processos de conversão química envolvidos na produção de fármacos

Referências Bibliográficas

SHREVE, R. N.; BRINK Jr., J. A. Indústrias de Processos Químicos. 4a Edição, Ed. Guanabara Koogan S.S., Rio de Janeiro, 1997, 717p.

WONGTSCHOWSKI, P. Indústria Química Riscos e Oportunidades. 2a edição, Ed. Edgard Blücher LTDA., São Paulo, 2002, 306p.

LACHMAN, L.; KANIG, J. L.; LIEBERMAN, H. H. Teoria e prática na indústria farmacêutica. 2a edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, vols. 1 e 2, 2010, 500p.

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