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Capítulo 2 Fazer história e escrever a história:
para que serve a história?

Transformações do conhecimento histórico

Em seu texto célebre A operação historiográfica, Michel de Certeau (2002, p. 65) indaga: o que fabrica o historiador quando faz história? Para quem trabalha? O que é este produto, a história? Ele não revela explicitamente, mas o problema está ali, nas entrelinhas: para que, afinal, serve a história? Talvez a própria história da história possa nos dar alguma orientação nesse sentido. Contemplar a trajetória do conceito e das práticas em torno da escrita da história poderá iluminar nossa compreensão do que é o ofício do historiador. Afinal, desde a Antiguidade, conhecer ou narrar eventos passados já era uma atividade que existia. Contudo, o estatuto daquele saber e a definição daqueles que se encarregavam de produzir a história têm uma natureza bastante diversa da atualidade.

Observar a história da História nos conduzirá a reflexões importantes sobre a escrita da história e sua finalidade em diferentes momentos. E também nos levará a responder outras indagações relevantes: a história é uma ciência, uma atividade cientificamente orientada ou é apenas mais um gênero narrativo? Quando surgiu a definição da história como um campo específico ao lado dos demais conhecimentos existentes? Quando ser historiador se tornou uma profissão específica?

O historiador Antoine Prost, em um capítulo específico de Doze lições sobre a história, analisa o desenvolvimento da profissão de historiador. Segundo ele, no longínquo reino de Akkad (2270-2083 a.C.) na Mesopotâmia, escribas foram destinados para registrar eventos ocorridos no presente e no passado. Também no Egito Antigo alguns textos foram redigidos para preservar a memória sobre determinados eventos. E, igualmente, no Livro dos reis do Israel antigo, podemos tomar contato com alguns episódios ocorridos em meados dos 1.200 anos antes do nascimento de Cristo. Assim, temos, na Antiguidade, as primeiras preocupações com o registro das ações humanas no tempo. Não é possível chamar aquelas narrativas de história, pois, de acordo com o historiador Georg Gervinus, lhes faltava exatamente a crítica e o exame dos sobre os eventos narrados, bem como a posição crítica do narrador/historiador. Afinal, aqueles escritores não eram historiadores, mas apenas escribas ou cronistas.

Fotografia de escultura em calcário. Homem escriba sentado de pernas cruzadas. Cabelo curto, rente à cabeça. Braços apoiados nas pernas. Mãos seguram um papiro.
FIGURA 1: O Escriba - era aquele que na Antiguidade dominava a escrita e a usava para, a mando do regente, redigir as normas do povo daquela região ou de uma determinada religião.
Fotografia de escultura em pedra. Homem escriba sentado de pernas cruzadas. Cabelo liso, na altura dos ombros. Braços apoiados nas pernas. Mãos seguram um papiro.
FIGURA 2: O escriba egípcio, estátua do Museu do Louvre.

Para Gervinus, cronologias, genealogias e anais representam os fundamentos sob os quais se desenvolveriam posteriormente tanto as memórias, nas quais surge a subjetividade e a interpretação do autor/narrador, quanto, por conseguinte, as histórias, cujo nascimento teria se dado, para esse autor, no século XIX, quando uma concepção científica marcaria o nascimento de um novo saber. Cronologias relacionavam apenas indivíduos ou objetos a uma data; genealogias, apenas indivíduos a uma data ou linhagem e os anais, por seu turno, seriam um relato que relacionava ações humanas e suas datas. Nada de análise, interpretação ou crítica sobre os eventos ou seus sujeitos. Nas memórias, gênero que tanto pode ser percebido em alguns autores da Antiguidade grega e romana, mas sobretudo nas Idades Média e Moderna, havia o surgimento da figura do narrador como um organizador e intérprete dos eventos narrados, dos quais, muitas vezes, era partícipe.

De qualquer modo, é com Hecateu de Mileto (546-480 a.C.), um precursor de Heródoto, que temos uma das primeiras narrativas históricas da Antiguidade. Em sua obra Descrição da Terra e também na famosa Genealogias, ele narra episódios importantes do povo grego e, ainda, suas viagens pela Pérsia. Em seguida, temos o surgimento do emblemático Heródoto de Halicarnasso (485-430 a.C.), que redigiu as Histórias, que se refere, porém, mais a relatos ou estudos. Cada um dos livros é dedicado a uma das Musas. Célebre sobre a obra é seu Proêmio, no qual justifica sua tarefa de livrar do esquecimento os motivos e os eventos das Guerras Médicas. Outro importante historiador daquele momento é Tucídides (460-395 a.C.), o ateniense, exilado como Heródoto. Tucídides escreveu A guerra do Peloponeso, na qual se encontram princípios inovadores da História. Esses autores gregos aproximam a história da épica e da tragédia, consideradas gêneros superiores que buscavam relatar feitos heroicos, embora humanos. Naquele momento, a história era entendida como um gênero literário, como um tipo de texto. Aristóteles inclusive a descrevia como um gênero inferior; para ele, seria uma narrativa curta, com começo, meio e fim, marcada por uma peripécia ou acidente, que tratava de eventos que teriam acontecido.

Arte digital. Mapa em formato circular, bordas azuis com a palavra “ocean” escrita dos lados esquerdo e direito. Centro na cor branca com algumas manchas marrom-claro. Dentro da área branca, também há escrito as palavras “Europe, Libya e Asia”. Manchas azuis conectadas à borda invadem a área branca central.
FIGURA 3: Mapa do mundo na concepção de Hecateu.
Fotografia de escultura em mármore cinza claro. Busto de homem de meia idade, calvo na parte superior frontal da cabeça e barba cacheada longa. Boca, nariz e olhos desgastados.
FIGURA 4: Heródoto de Halicarnasso.
Fotografia de escultura em mármore amarelo. Busto de homem de meia idade, cabelos curtos e barba curta. Rosto bem definido, lábio inferior carnudo, nariz grande, de formato quase retangular e olhos bem abertos.
FIGURA 5: Tucídides, o ateniense.

De um modo esquemático, poderíamos situar os desdobramentos da atividade de escrever e compreender a história ao longo do tempo, da seguinte maneira:

1 – Uma história LITERÁRIA – desde Aristóteles no século IV a.C. até meados do século XVIII – entendida como um gênero menor e inferior à poesia ou à tragédia, uma narrativa curta sobre eventos que teriam acontecido;

2 – Uma história RETÓRICA – desde Cícero no século II a.C. até meados do século XIX –desenvolve técnicas de argumentação e persuasão; é lida e reproduzida como uma tradição ou um cânone; segundo a qual a autoridade residiria nos autores clássicos, cujos textos serviriam de modelos permanentes e imutáveis;

3 – Uma história FILOSÓFICA – desenvolve-se no século XV durante a era Moderna, atravessa o Iluminismo e chega até o século XIX; busca identificar um sentido para a história, que a liga ao desenvolvimento da humanidade, elucidando a cultura e a política dos povos e civilizações;

4 – Uma história CIENTÍFICA – desenvolve-se durante o século XIX em reação ao romantismo e às histórias filosóficas herdadas do Iluminismo e chega até os dias atuais; elege a pesquisa e crítica das fontes como pilares metodológicos, buscando compreender ou explicar o passado;

5 – Uma história NARRATIVISTA – resultado dos debates e da crítica pós-modernos desde meados de 1980, que procuram compreender a história como um artefato interpretativo e literário, cuja explicação reside na própria narrativa e não no referente, o passado.

No primeiro tipo de compreensão, a história modelar dos antigos (Heródoto e Tucídides são principais modelos), fazer a história implicava encontrar testemunhas oculares, depoimentos críveis e informações em documentos originais para se estabelecer a verdade e a certeza sobre os eventos narrados.

No segundo tipo, a história retórica dos modernos (Cícero e Tácito são seus principais paradigmas), o historiador busca testemunhos oculares, mas na ausência destes não hesita em amparar-se em certos testemunhos ou intérpretes tidos como de valor, ou na autoridade dos antigos. Esse tipo de história conhece um relativo desenvolvimento com a história cristã medieval (de Santo Agostinho e Isidoro de Sevilha), que, além de procedimentos retóricos, remete sua autoridade para os textos bíblicos.

A história erudita ou retórica conheceu enorme consolidação durante o Renascimento (em especial com o desenvolvimento da noção de crítica e de referências ou notas a outras fontes e autores). Naquele momento, surgem algumas inovações, inclusive que passam a rever a autoridade de alguns testemunhos e obras da Antiguidade, buscando a constituição de uma nova história da qual são exemplos os italianos Guicciardini, Maquiavel e Vico9, esse último desenvolvendo um tipo bastante sofisticado de reflexão sobre o tempo e a história. De qualquer modo, essa história erudita ou retórica durante o Renascimento foi polímata e cheia de acréscimos e comentários, como a medieval, mas se manteve presa à crítica dos testemunhos críveis e fiel à tradição dos antigos. A diferença da história medieval é o fato de que ela procura adequar a história humana à providência e às sagradas escrituras.

Durante o Iluminismo, desenvolve-se um novo perfil de história, que se aproxima da filosofia e do racionalismo. A história filosófica das Luzes chegará até Hegel, tendo como base uma filosofia da história, que defende uma história universal, linear, não mais governada pela Providência, como na Idade Média, mas pela razão, com um sentido progressivo e cujas leis naturais poderiam ser compreendidas. Caberia ao interessado pela História tentar comprovar os dados ou fatos mencionados pela tradição. De qualquer modo, há certo desprezo pelas fontes, pela empiria e uma valorização, sobretudo, da interpretação e um amparo na metafísica na busca de sentidos ou ideias universais como fios condutores da história.

No século XVIII, a histórica filosófica conheceria desdobramentos inusitados, tornando-se uma história mais crítica, marcada pela querela entre os antigos e os modernos, na qual a autoridade dos antigos é questionada, quando surge a desconfiança sobre os testemunhos. São expressões desse momento e, de algum modo, representam uma crise do modelo retórico ou tradicional as obras de Gatterer, Schlosser, Voltaire, William Robertson, Gibbon, Von Müller e Chladenius. Destes, Voltaire10 e Chladenius11 são emblemáticos: o primeiro, por desenvolver um conceito de história atrelado à cultura e que pensa a história não somente como um gênero literário ou um discurso filosófico, mas como uma narrativa que procura dar sentido ao presente; o segundo, por constituir os fundamentos do historicismo alemão ao basear a crítica histórica na análise das múltiplas versões existentes e seus conflitos, inaugurando o perspectivismo, ao defender a singularidade de toda história e ao revelar que a história é uma ciência específica baseada no método compreensivo. riência e apreensão da realidade sensível. Por sua vez, Goethe (1749-1832), expoente do Romantismo12, destacou a ênfase sobre o estudo das raízes e das origens, evidenciando a importância da história para todos os tipos de saber. Merece destaque também Hegel (1770-1831), com a defesa da dialética, dos poderes éticos e da compreensão da Razão e do Estado como forças históricas determinantes.

Durante o século XIX é que se desenvolve um novo cronótopo ou, ainda, um novo conceito de história, a história científica. Esta, tal como as demais ciências, buscou fundamentar-se em torno da crítica documental, do uso de disciplinas auxiliares ou propedêuticas (como a numismática, a filologia, a geografia, etc.). Ampara-se na descoberta, valorização e uso de fontes primárias ou de arquivos, tornando-se um tipo de matriz disciplinar, um estudo que demandaria uma formação acadêmica específica, universitária. Essa concepção de ciência histórica foi desenvolvida pelos historicistas alemães, sobretudo por Leopold von Ranke13, que defendia o uso de fontes originais de arquivo e criou o modelo de ensino acadêmico baseado no seminário. Essa ciência histórica amparava-se também na crítica do anacronismo e no desenvolvimento da heurística, com Niebuhr (1776-1831), bem como na elaboração e definição da teoria da história, realizada por Droysen (1808-1884).

Fotografia preto e branca. Homem de meia idade, barba e cabelo branco, sentado em uma cama, com os pés para fora. Usa terno e gravata borboleta, sapato social e um sobretudo que toca o chão. Senta inclinado, com o peso apoiado no braço esquerdo. O braço direito, apoiado sobre as pernas, segura a aba esquerda do sobretudo. Na cama, ao lado do braço direito, um livro grosso.
FIGURA 6: Leopold Von Ranke 1877.

Foi no contexto germânico que surgiriam também revistas devotadas exclusivamente ao estudo da história, como a Historische Zeitschrift, em 1859. Nesse momento, a empiria – ou os dados coletados nas fontes – passa a ser mais importante que a interpretação, que deveria ser evitada. O ideal preconizado era o de se construir um saber objetivo e, se possível, isento das paixões do historiador, algo que, evidentemente, era uma meta difícil de ser atingida. Nesse contexto, cria-se um novo campo do saber, apartado da literatura ou da filosofia, que reivindica para si um objeto de estudo específico (o passado ou as ações humanas no passado), um método específico (histórico, baseado na crítica documental e na hermenêutica) e um novo tipo de profissional: o historiador. Não por acaso surgem cursos específicos de história nas universidades desde então, bem como a profissão do historiador. Até essa época tínhamos historiógrafos reais, contratados pelos monarcas europeus para redigirem a história de seus ancestrais ou de seus reinos. A partir daí, haveria historiadores que passariam a se dedicar aos mais variados temas, não necessariamente vinculados à história de reinos ou reis.

Notas proêmias: Fotografia da revista alemã Historische Zeitschrift de 1859. Capa de revista em formato retangular com o fundo branco, bordas acinzentadas. De cima para baixo, estão dispostos de forma alinhada ao centro, na cor preta e com diferentes tamanhos de fonte, os seguintes textos: 1 - Hilfurilhe Zeitlichrift. 2 - herausgegeben von. 3 - Heinrich von Sybel,. 4 - o. B. Profeffer der Geschichte an der L. 5 - Ludw-Mar-Universitat in Munchen. 6 - Ester Band. 7 - Munchen, 1859. 8 - Literarisch-artistische Anstalt. 9 - der I. G. Cotta’schen Buchhandlung.
FIGURA 7: Revista Historische ZeitschriftB, primeira edição (1859).

Mais ou menos nesse momento, ainda na França, alguns historiadores, identificados como metódicos, também expressariam uma concepção científica da história, mas, diferentemente do historicismo alemão, uma história. Nessa época há uma clareza de que os anais, as crônicas, as genealogias e as memórias não devem ser consideradas como história. A história passa a ser uma ciência que necessita da crítica dos testemunhos, do manuseio de um conjunto de técnicas de análise das fontes, do recurso a um modelo teórico e um conjunto de conceitos para se tornar um saber verdadeiro e autônomo. No caso francês, observamos, na Sorbonne, que as cátedras de história existentes saltam de 2, em 1878, para 12, em 1914, e depois para 55, em 1944. Isso dá a exata medida da autonomia que o campo conhecerá, como uma área específica do saber científico ao longo do século 20.14

Até o desenvolvimento dos estudos específicos de história nas universidades, era comum que muitos dos que se dedicassem ao estudo do passado se formassem em Filosofia ou em Filologia. A partir de então, na Alemanha desde 1836, cada vez mais seriam criados Institutos Históricos, cursos de História, revistas de História (na França, em 1876, também foi criada uma revista, como a dos alemães, inclusive com título idêntico: a Revue Historique), bolsas de estudo para o desenvolvimento da pesquisa histórica, organização de coleções de documentos e arquivos, mas também de bibliotecas. Há uma demanda crescente de interesse pela história. Na verdade, tanto o nacionalismo do século 19 quanto os embates nacionais vividos durante o início do século 20, acirrados com a Primeira e a Segunda Guerra mundiais, evidenciaram uma grande expectativa social pelo conhecimento da história. O mercado editorial dos livros de história é um dos mais rentáveis. Cabe ainda destacar que, na Alemanha, o desenvolvimento do método histórico se daria no debate junto à Filologia e à Filosofia, enquanto na França o desenvolvimento se deu com o debate com a sociologia de expressão positivista.

Notas proêmias: Fotografia da revista francesa Revue Historique de 1965. Capa de revista em formato retangular com fundo branco. De cima para baixo, estão dispostos de forma alinhada ao centro, na cor preta e com diferentes tamanhos de fonte, os seguintes textos: 1 - Table Genérale. 2 - Des cino prenieres Annees. 3 - de la. 4 - Revue Historique. 5 - (1876 a 1880 inclusivement). 6 - Tome 1-14.  5 - linha para separação. 6 - Paris. 7 - Libbrarie germer. baillere et Cie. 8 - 108, Boulevard saint-germain.9 -  Au cois de la rue hautefeulle. 10 - 1881. 11 - Reprinted with the permission of the. 12 - Presses Universitaires De France. 13 - Kraus reprint LTD. Vaduz. 1965.
FIGURA 8: Revue Historique.

De um modo geral, dois cronótopos diferentes se confrontam no século 19: o primeiro, tradicional, é o da história exemplar e clássica (amparada na retórica, no caráter pedagógico e em testemunhos oculares) e o segundo é o da história científica (baseada na crítica documental). No primeiro, a história tem algo a nos ensinar; no segundo, a história se torna um objeto de investigação sem o caráter exemplar. Naquele momento, não seria mais o convencimento, os aparatos de erudição ou o apelo aos clássicos que conferiria autoridade aos estudos históricos, mas sim a inovação e a busca por um conhecimento seguro, baseado em documentos. Com a construção de um método, ao lado da autonomização do campo, os estudos históricos se separam, definitivamente, da Filosofia e da Literatura, sendo a história considerada não mais apenas um saber, mas também uma ciência, acabada para os alemães, em construção para os franceses. A história científica foi uma superação da história filosófica e da história literária ou romântica na França, tarefa empreendida pelos metódicos.15

Por fim, cabe destacar que, para os alemães, a história é uma ciência idiográfica, humana, que estuda fenômenos singulares, portanto incapaz de construir modelos, leis ou teorias universais. Ela se resumiria a compreender os nexos ou elos que uniriam os fenômenos históricos e os princípios ou forças históricas que motivariam as ações humanas. Como fazer ciência histórica? O método histórico, para os alemães, é diferente do método das ciências naturais; é compreensivo (Chladenius e Droysen) e filológico (Niebuhr e Ranke). Tais embates deram ensejo, na Alemanha, ao Methodenstreit, ou debate sobre o método.

Método histórico e crítica documental

Vejamos por que, afinal, o método histórico é tão importante para compreendermos a natureza científica da história. Ou, em outras palavras, passemos a analisar como é que a história é feita. Há dois autores que nos auxiliam bastante nessa tarefa. Um deles é Antoine Prost (2008), em seu capítulo “Os fatos e a crítica histórica”, e o outro é Michel de Certeau (2002), com seu A operação historiográfica. Passemos a analisá-los.

Para muitas pessoas, a história é o passado ou os fatos do passado. Eles enxergam nos historiadores um sujeito que é capaz de reconhecer e explicar aqueles fatos. Nada mais ingênuo. Como se os fatos fossem algo já dado. Não foram poucos os historiadores ou mesmo antropólogos que denunciaram a falácia dos fatos, entre eles Claude Levi-Strauss ou ainda Paul Veyne, pois, para ambos, os fatos também são uma invenção da sociedade e dos historiadores. Assim, de uma tarefa simples que seria estabelecer os fatos, relacioná-los, ver sua ligação e explicá-los, a história tem se tornado cada vez mais uma tarefa complexa. Afinal, por que, por exemplo, o 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos se tornou um fato? Ou ainda a quebra da bolsa de Nova Iorque em 1929? Ou a vinda da família real portuguesa para o Brasil em 1808? E, quando vamos atribuir significados a esses eventos, não existem discursos divergentes? Haveria alguma interpretação consensual sobre todas as verdades atribuídas a determinados fatos?

A rigor, há um desejo deliberado por parte de quem controla espaços de poder político ou comunicativo e fixou essas datas. Trata-se de um critério adotado e construído que institui marcas no tempo e nos textos, de modo que nossas vidas carregariam também a força desses eventos, que de algum modo se tornam eventos narrados, mas também carregados de significados. Inclusive, tais eventos passam a incorporar sentidos em nossas próprias vidas. Mas, de acordo com Humboldt16, os fatos são apenas o esqueleto da História e não a própria História. Segundo Langlois e Seignobos17, dois expoentes da escola metódica francesa do século 19, os fatos não estão prontos, eles devem ser construídos pelos historiadores. Tornar a História uma ciência deveria, para eles, ser um modo de conseguir testemunhos que pudessem permitir a descoberta dos fatos, que funcionariam como índices para compreender as mudanças históricas ou o desencadeamento de determinados fenômenos, para então realizar a crítica desses testemunhos. Quase como numa operação policial de investigação, através desses indícios e da validação ou não dos testemunhos ou evidências, os fatos seriam não somente conhecidos, mas teríamos deles, inclusive provas.

O historiador Gabriel Monod, outro expoente da escola metódica e fundador da Revue Historique, em 1876, defendia que cada afirmação dos historiadores pudesse ser confirmada com provas documentais. Gabriel Monod teve também papel decisivo na reabilitação do tenente Dreyfus na França, um judeu que havia sido condenado como um espião traidor durante a Guerra Franco-Prussiana. Juntando documentos, ele ajudou a comprovar a inocência daquele militar das acusações, livrando-o da prisão. Foi nesse momento que se desenvolveu um aparato específico para confirmar as informações e as provas naquela historiografia oitocentista: as notas de rodapé. Essas passaram a funcionar como um conjunto de procedimentos para indicar com precisão de onde saíam as informações e onde encontrá-las.18 Anthony Grafton escreveu um livro a esse respeito: As origens trágicas da erudição (1998).

Algumas técnicas, contudo, desenvolveram-se para identificar e analisar as informações e a veracidade dos fatos. Na França, elas tiveram início com a obra De re diplomatica libri sex, de Mabillon, redigida em 1681, e também na medieval Escola de Chartres, fundada no século XI, especializada na produção e análise de diplomas, textos e documentos. Como se vê, as fontes que naquele momento eram as mais valorizadas eram os textos, também chamados documentos. Acompanhando uma tradição jurídica, o documento seria uma prova do passado, sua evidência. Encarcerados em arquivos empoeirados de instituições públicas e privadas, que seriam pedreiras, dali os historiadores extrairiam suas fontes, pedras brutas a serem lapidadas por meio da crítica documental. Esta se dividia, a partir dos metódicos e mediante a clara definição de Langlois e Seignobos (1946), em crítica externa ou do material (sua forma, origem, destinação, etc.) e crítica interna (sobre seu conteúdo e suas informações). Para essa operação seriam invocadas, sempre que necessário, ciências auxiliares: paleografia (datação e grafia), diplomática (diplomas), sigilografia (selos), epigrafia (lápides), filologia (comparar manuscritos e achar o original), entre outras. Eis algumas das questões mais fundamentais lançadas ao documento: de onde ele vem? Quem é seu autor? A quem se destinava? Como foi transmitido? Como se conservou? O autor é confiável? Qual seu conteúdo? O que diz é verdadeiro? Quando foi escrito? Em qual lugar se encontrava?

Dois eixos orientavam esse conjunto de indagações: a chamada crítica de sinceridade (ou das intenções do autor) e a crítica de exatidão (ou seu grau de imprecisão ou inverdade). Pode-se notar, com efeito, que a crítica documental francesa desenvolve estratégias baseadas numa desconfiança apriorística em relação ao documento. De todo modo, ela coloca um conjunto de preocupações que ainda hoje orientam, explícita ou implicitamente, o trabalho dos historiadores. A primeira tem a ver com o que denominamos de contextualização. Ou seja, inserir o documento nas condições de possibilidade e de seu surgimento. Um passo útil nessa direção pode ser a recuperação do sistema de representações existentes na época, ou as disputas de representações. A segunda tem a ver com o que o documento diz claramente e o que ele deixa implícito, ou seja, com as observações diretas e indiretas que podem ser extraídas dele. Outra questão fundamental seria compreender aquele documento como um presente que passou, evitando assim, a tautologia, ou seja, a partir do desfecho da história que já é conhecido pelo historiador, de antemão atribuir um sentido para a informação existente.

Vale considerar que a existência ou não de documentos para comprovar determinados fatos é sempre algo complexo para a história. Dois exemplos são importantes nessa direção. A existência de armas químicas usadas e escondidas pelos nazistas, em especial o gás zyklon B, ou pelos iraquianos durante o governo de Saddam Hussein. O simples fato de não terem sido encontrados gases ou ainda os produtos que eram utilizados em sua fabricação, muito menos de documento tratando de sua procedência, quantidade ou armazenamento significa que tais armas não tivessem existido? É evidente que não. Tanto testemunhas oculares quanto sobreviventes demonstram a fragilidade de se tentar escrever a história apenas com documentos escritos ou evidências materiais, pois na ausência deles seria como se nunca tivessem existido. Essa é a grande fragilidade das histórias baseadas exclusivamente nas fontes documentais preservadas, ou que se fundamentam nelas, como proposto pela escola metódica francesa que estudaremos mais adiante.

O historiador deve considerar que escrever a história é muitas vezes ir ao encontro de diferentes tipos de fontes, bem como uma necessidade mais ou menos constante de preencher lacunas. A ingenuidade metódica fica explícita no exemplo acima, pois não é possível escrever a história automaticamente partindo do documento, como se ele fosse em si a própria história. De qualquer modo, a partir do uso de diversas fontes (orais, escritas, iconográficas, digitais e até gestuais), é possível construir um caminho que vai do documento, passando pela crítica, até a confirmação ou construção dos fatos.

Tais questões nos conduzem a um questionamento feito por Henri Marrou (1978), filósofo e teórico da história. Para o francês, a história não é exatamente uma ciência, mas um saber, um modo de conhecer. Juntar esses fatos e fragmentos, realizar a crítica dos testemunhos implicaria numa história de tesoura e cola, como afirma Robin Collingwood (1998), que não chegaria muito longe se não fosse a imaginação construtiva do historiador, capaz de fazer com que o presente dialogasse com o passado.

A contextualização ou a confirmação de fatos a partir do que preservaram as fontes ainda existentes, um procedimento predominante na historiografia do século 19, deram lugar a outro tipo de construção da história em tempos mais recentes. Lord Acton (1834-1902) foi um dos primeiros a alertar para esta outra possibilidade: invés de fatos ou períodos, estudem problemas . Esse convite, feito em 1895, foi aceito mais adiante por Marc Bloch e Lucien Febvre, fundadores de uma das mais importantes escolas do pensamento historiográfico contemporâneo, os Annales na França.

Até então os historiadores costumavam escrever histórias mais gerais de grandes períodos, épocas ou nações. Assim, havia obras sobre A Inglaterra medieval, A França moderna, A Grécia Antiga, istória da Espanha, entre outras, que se tornaram objetos passíveis de críticas pontuais: eram muito genéricas, expressavam uma história geral que mantinha grandes lacunas e se baseavam excessivamente na história política e na ação de grandes personagens. Desse modo, não mais os documentos ou as datas ou fatos seriam o ponto de partida para a escrita da história, mas sim os problemas que se colocavam ao passado. Por que houve a guerra? O que era a pobreza na Idade Média? Quais eram as obras mais lidas durante o Renascimento na Itália? Quais os personagens que efetivamente coordenaram o golpe militar brasileiro em 1964?

Outro ponto importante foi a reinserção da memória como um campo de reflexões necessárias para a história. Afinal, durante um bom tempo a escrita da história foi vista quase como uma operação narrativa, baseada em fontes textuais. A história teria encerrado as imprecisões e as lacunas da memória com seu trabalho exaustivo de investigação. A partir do início do século 20 e, sobretudo, com o desenvolvimento de tecnologias capazes de preservar depoimentos, como o gravador, novamente a memória surge como objeto de reflexão dos historiadores. O registro da oralidade visto, muitas vezes, como subjetivo ou incerto, ganhava novamente importância, enquanto registro histórico muitas vezes capaz de refutar ou aperfeiçoar as informações obtidas em outras fontes. Assim, historicamente, se a história teria nascido como uma reação à memória e à oralidade, havendo uma complexa relação entre ambas ao longo do tempo, como a cientificização crescente da história e a problematização da oralidade e da memória, mais recentemente verificamos uma cientificização da memória que parece querer se transformar em parte ou até mesmo na própria história. Inversamente, é a história que tem sido cada vez mais problematizada e colocada em xeque. Como se vê, história e memória são conhecimentos válidos e operacionalizados pelos historiadores para se estudar o passado e o presente.

Voltando ao texto de Michel de Certeau (2002), para ele o método das ciências humanas é compreensivo, portanto, elas seriam mais interpretativas que explicativas; a história seria um lugar social onde uma prática e uma escrita se instituem, tendo uma importância determinada em cada sociedade, em cada época. Isso nos leva a compreender as confusões, muitas vezes existentes, na problemática relação da história com seus métodos, pois ora se aproxima mais da arte, ora das ciências, ora das técnicas. A rigor, todos os historiadores se submetem a uma disciplina e se utilizam de técnicas ou instrumentos de investigação. Já os textos produzidos sobre o passado remetem-nos ao lugar ocupado e ao tempo dos historiadores. A escrita da história imobiliza uma dada imagem do passado, ficcionalizando-o; utilizando a teoria psicanalítica de Freud, dirá que a história é um ausente e, com Foucault, que expressa uma vontade de verdade.

A essência da história é o texto produzido pela figura historiador na qual passado e texto não são exatamente coincidentes. Em linhas gerais, para Certeau (2002), a operação historiográfica pode ser entendida a partir de três aspectos fundamentais. Em primeiro lugar ela expressa um lugar social que envolve relações de poder e de força, no modo como os indivíduos se organizam para produzir e validar a própria história. Em segundo lugar ela é uma prática, um conjunto de saberes e de técnicas que informa uma disciplina aos historiadores, oferecendo um conjunto de regras, mas também de interditos. Por fim a história é uma escrita, um artefato textual. Como se vê, há uma forte referência à obra de Michel Foucault (2002) nessa perspectiva, com sua problemática dos saberes, poderes e regras, e também a respeito do caráter discursivo do conhecimento.

Para esse autor, a operação histórica é a combinação de um lugar social, de práticas ditas científicas e de uma escrita. Ou seja, a “escrita histórica se constrói em função de uma instituição cuja organização parece inverter: com efeito, obedece a regras próprias que exigem ser examinadas por elas mesmas” (FOUCAULT, 2002, p. 66). O sociólogo francês Raymond Aron (1905-1983) já havia demonstrado que não existem verdades objetivas, em sua tentativa de demonstrar a dissolução do objeto nas ciências históricas. Fatos são escolhas, documentos são construções, análise implica compreensão, isto é, o historiador parte, inexoravelmente de um lugar para confeccionar seu discurso.19

A história é um lugar social, que se constitui de várias comunidades de historiadores em vários lugares e países. Para Certeau (2002), eles formam o campo, definindo o objeto da história e organizando as instituições históricas. De algum modo, tentaram, nas origens da formatação científica do campo, defender uma despolitização e uma neutralidade por parte dos historiadores. Defendiam mesmo que o historiador tinha um compromisso com a verdade e produzia um saber objetivo. A partir dos anos 1950 essa despolitização vai sendo paulatinamente desmascarada, de modo que atualmente existe a defesa de que os posicionamentos políticos do historiador devam ser explicitados. E que a objetividade convive com a subjetividade das próprias escolhas teóricas, metodológicas, de objetos determinados, dentre outros. Hoje vivemos uma época de repolitização na medida em que se sabe que é impossível escrever uma história totalmente neutra. No processo de institucionalização, a história reivindica para si espaços de formação e difusão, universidades (antes eram as Academias de Ciências e os Institutos Históricos que reuniam amantes da história, diletantes, autodidatas, mas não exatamente especialistas) e também procedimentos científicos de trabalho, organizando arquivos, equipes de trabalho e métodos.

A história é uma prática na qual os dados são buscados e organizados pelo historiador. Ou seja, mesmo os documentos são onumentos erigidos pelo historiador, visto que são destacados alguns e desprezados outros. Ao serem escolhidos ou quando somente alguns restaram, há uma valoração destes que é feita pelo historiador e que implica, de algum modo, subjetividade. E é desses fragmentos que a história é produzida – a história e sua relação com a ruína, com algo que é absorvido pela paisagem, pela natureza. A pesquisa científica opera uma transformação, da qual o produto final não revela essas marcas ou escolhas.

Isso tudo criou um enorme aparato, um aparelho gigantesco na contemporaneidade, de fontes, de arquivos, de centros de documentação e de pesquisas e obras de história. O computador veio trazer a possibilidade de ciência, de quantificação, de objetividade. No início, temos, por exemplo, uma história que destacava um e outro documento, geralmente oficiais. Com a escola dos Annales surge uma tentativa de examinar à exaustão séries documentais inteiras, para serem quantificadas, analisadas a fim de se descortinarem modelos ou grandes sistemas explicativos capazes de aproximar o estudo da realidade passada efetivamente vivida, valorizando-se os mais diferentes tipos de fontes: orais, escritas e iconográficas. Desse tipo de relação com os documentos, chegamos aos dias atuais com outra relação com tais fontes; saímos das regularidades e dos sistemas ou modelos para chegarmos a uma história que dá preferência ao desvio, às singularidades. Ao invés de longas e exaustivas séries para se elaborar modelos, os historiadores têm optado por recortes, por escolhas singulares de poucos documentos, ou às vezes mesmo um único.

Por fim, a história é uma escrita, ou seja, um modo de representação do passado. Na verdade, uma reinvenção do próprio passado, visto que o retrata a partir de outras perspectivas e enquadramentos, com interferências pessoais e subjetivas das escolhas feitas pelo historiador. Segundo o historiador Henri Marrou, estaríamos ainda diante da servidão da escrita, pois a linguagem e o texto se tornariam autônomos, ganhariam vida própria. E todo o processo de fabricação dos textos e narrativas dos historiadores está oculto. Isto é, o artigo ou o livro de história não revela para os leitores todo o processo que levou à sua constituição, o início da pesquisa ou sua motivação, as indagações colocadas pelo historiador, a busca e a crítica das fontes, a elaboração do próprio texto. Igualmente, não revela quais foram as escolhas, os eixos, a composição do enredo e o perfil de leitor imaginado. Essa questão sobre as narrativas dos historiadores será analisada de maneira mais específica no último capítulo, quando verificaremos as contribuições seminais de Hayden White e Paul Ricoeur sobre a escrita da história.

A obra histórica também apresenta a cronologia como uma lei mascarada (um segmento temporal limitado, circunscrito) que, embora verse sobre o passado, atinge o presente – uma lei, porque não é possível construir nenhuma história sem o recurso à temporalidade. O ato da escrita tem como imprescindível também um processo de seleção e de semantização, ou seja, de tornar inteligível o que se narra, ordenando-o de maneira coerente. Como narração, o discurso histórico tem como conteúdo a verdade e sua expansão que se dá mediante a sucessividade temporal. Para Certeau (2002), a historiografia surge como um tipo de encenação, um recurso aos conceitos e à retórica, pois necessariamente preenche lacunas e atribui sentidos específicos ao passado, conferindo-lhe inteligibilidade para os que vivem no presente. Muitas vezes a história é uma purificação; outras, um exorcismo do passado. De qualquer modo, a escrita da história é como que uma tentativa de enterrar o passado, colocando-lhe uma lápide. Um espelho do real? Jamais. É o resultado de um tipo específico de atividade científica que resulta num artefato literário.

Neste ponto, deve ter ficado claro que a produção da história se revela como um trabalho que possui um fundamento científico de pesquisa e análise documental e outro literário ou poético de escrita, pois necessita de um suporte para materializar os resultados da pesquisa através de textos, que exige tanto a imaginação quanto a ficcionalização por parte do historiador. O ponto polêmico é se os historiadores seriam capazes de construir leis gerais para a história. Alguns teóricos da história defenderam, ao longo do tempo, que sim20, e mais recentemente parece haver um consenso de que não21.

Isso nos conduz à questão sobre a atividade do historiador: se seria científica, dotada de leis e modelos de investigação baseados na objetividade, dentre os quais aqueles vinculados à história alemã oitocentista, à escola metódica francesa, ao marxismo etc., ou se, ao contrário, ela seria uma ciência compreensiva, ou idiográfica, que estuda singularidades e não regularidades, em que o sujeito e o objeto do conhecimento se confundem, pois ambos são os homens.

Na prática, o problema da objetividade tem mais a ver com o controle dos preconceitos e pré-compreensões por parte do historiador. A imparcialidade, outra questão delicada, também ser tornou um verdadeiro mal-entendido, pois diz respeito a não tomar partido em relação aos sujeitos históricos do passado e suas disputas, tal como desejava Ranke, e não que os historiadores não devessem se posicionar em face daquelas questões. Na compreensão há o reconhecimento de que a história não é capaz de ser uma ciência 100% objetiva ou imparcial. Por fim, devido à influência da etnografia, da antropologia cultural e simbólica, como também da crítica literária, há a defesa por parte de alguns historiadores de que seu trabalho é interpretativo, pois todo relato é um relato situado a partir da perspectiva do narrador, do sujeito do conhecimento e não de seu objeto. Veremos mais sobre esse aspecto no último capítulo.

A história serve para alguma coisa? Não para uma única, mas para diversas coisas. São inúmeras as funções que o conhecimento histórico proporciona às nossas sociedades. O historiador Jörn Rüsen apresenta algumas dessas funções (2001, p. 32-36), das quais destacamos algumas: a função propedêutica – confere uma base e um ponto de partida para todos os saberes. Por exemplo, caso a medicina não conhecesse sua própria história, estaria fatalmente condenada a reproduzir terapêuticas ou práticas já utilizadas inutilmente no passado. A função de coordenação – como tudo tem uma história e a história atravessa todas as esferas da vida humana, grosso modo, ela permite contextualizar e relacionar homens e saberes. Há também uma função de orientação, afinal, com as mudanças ou com o esquecimento, é necessário problematizar as carências de sentido da vida prática ou as incompreensões que surgem na sociedade. Exemplo disso é a mudança vivida pelos núcleos familiares atuais, com o surgimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo, ou a liderança por apenas por um indivíduo, ou ainda com a redução drástica do número de filhos para um ou nenhum. Tais fenômenos já teriam ocorrido no passado? Não por acaso essas carências promovem o avanço da própria história, que, ao estudar as mudanças, pode estabelecer informações valiosas para se compreender o passado e o presente. Conhecer o passado também permite a construção de identidades, operando como um saber organizador, orientando política e culturalmente os indivíduos que passam a se agrupar ou a se cindir mediante o processo histórico de sua constituição e diferenciação. Conhecer essa história significa apreender o que levou tais indivíduos a essa condição.

9
O filósofo italiano Giambattista Vico (1688-1744), em sua obra Ciência nova, propôs que a História, como outras disciplinas, fosse compreendida mediante especificações de caráter científico. [Ver no texto]
10
François Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire (1694-1778), foi um escritor, ensaísta, deísta e filósofo iluminista francês. Conhecido pela sua perspicácia e espirituosidade na defesa das liberdades civis, inclusive a liberdade religiosa e de livre comércio. É uma dentre muitas figuras do Iluminismo cujas obras e ideias influenciaram pensadores importantes tanto da Revolução Francesa quanto da Americana. Grande escritor, Voltaire produziu cerca de 70 obras em quase todas as formas literárias, assinando peças de teatro, poemas, romances, ensaios, obras científicas e históricas, mais de 20 mil cartas e mais de 2 mil livros e panfletos. [Ver no texto]
11
Chladenius é o sobrenome latinizado de Johann Martin Chladni (1710-1759). Teólogo de formação, foi também autor de obras significativas para o pensamento alemão, que tratam desde questões confessionais até discussões sobre a retórica e a história. Coube a ele o esforço epistemológico inaugural de precisar conceitos, indicar procedimentos de pesquisa e investigação e enfim, de localizar objeto, método e uma natureza para os estudos históricos. [Ver no texto]
12
Movimento estético e também filosófico que defendia a subjetividade e as realidades interiores em contato com a realidade sensível. [Ver no texto]
13
Leopold von Ranke (1795-1886) foi um dos maiores historiadores de sua época e da história da historiografia. Sua carreira acadêmica ganhou impulso com o sucesso de sua primeira obra, História dos povos latinos e teutônicos, em 1824, quando passou a integrar o corpo docente da prestigiada Universidade Humboldt de Berlim, centro de trabalho de grandes nomes da intelectualidade alemã do século XIX, como Hegel, Savigny, Fichte, Schleiermacher, Schopenhauer, Schelling, etc. No total, Ranke dedicou quase 65 anos à historiografia, com a produção de inúmeras obras que tinham como objeto, em sua maioria, o nascimento da Europa moderna durante os século XIV e XVII. Sem dúvida, esse historiador “pode ser considerado um dos fundadores da história científica na Alemanha e um dos fundadores do cientificismo” (BURGUIÉRE, 1993, p. 645). Ranke exerceu um papel importante na configuração dos aportes teóricos que possibilitaram fornecer um caráter científico à História. [Ver no texto]
14
Cf. MALERBA, J. (Org.). A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. [Ver no texto]
15
Cf. BURKE, P. A Revolução Francesa da Historiografia: a Escola dos Annales, 1929-1989. Tradução de Nilo Odália. São Paulo: Unesp, 1991. [Ver no texto]
16
Friedrich Wilhelm Christian Karl Ferdinand, Barão von Humboldt (1767-1835), diplomata, filósofo, fundador da Universidade de Berlim (hoje, Humboldt-Universität), amigo de Goethe e especialmente de Schiller, é principalmente conhecido como um linguista alemão que fez importantes contribuições à filosofia da linguagem, à teoria e prática pedagógicas e influenciou o desenvolvimento da filologia comparativa. Humboldt é reconhecido como sendo o primeiro linguista europeu a identificar a linguagem humana como um sistema governado por regras, e não simplesmente uma coleção de palavras e frases acompanhadas de significados. [Ver no texto]
17
  Charles-Victor Langlois (1863-1929) e Charles Seignobos (1854-1942) foram importantes representantes da Escola Histórica Francesa. São eles os autores da obra: L’introduction aux études historiques, publicada em 1898, que se tornou o principal “breviário, por assim dizer, oficial, dos estudantes de História” (BURGUIÉRE, 1993, p. 711). Tal obra define em suas linhas o método positivista: análises quantitativas; chamada de atenção para os grandes feitos políticos; exaltação dos heróis nacionais; compilação de fatos em ordem cronológica; utilização do documento oficial escrito como fundamental à verdade dos fatos. [Ver no texto]
18
Cf. REIS, João Carlos. A história entre a filosofia e a ciência. São Paulo: Ática, 1992. [Ver no texto]
19
Cf. ARON , Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2008. [Ver no texto]
20
Como Hegel em sua filosofia da história, Marx com as leis de desenvolvimento das forças produtivas e de formação dos modos de produção e Hempel com seu modelo de leis gerais para a história. [Ver no texto]
21
Como Michel de Certeau, Antoine Prost e Paul Veyne, que insistem na história como um saber que compreende fenômenos particulares e históricos, desprovidos de uma lei geral. [Ver no texto]
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