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Capítulo 3 Origens do conhecimento histórico:
da história magistra vitae e erudita à história romântica dos modernos

Qual a relação dos antigos com a história? O que significava pensar historicamente em sociedades como a Grécia e a Roma antigas? Quais as relações de continuidade dessa visão de história com a de períodos posteriores? É visando aclarar tais questionamentos que iremos nos debruçar, neste capítulo, sobre a visão de história surgida na antiguidade clássica e em seus desdobramentos filosóficos subsequentes.

Incialmente, é preciso dizer que os antigos inseriam a produção de textos sobre o passado nos logoi, ou seja, no logos, um campo no qual emergem os saberes derivados do conhecimento. A história é um saber, um logos, portanto, e, nesse sentido, se difere dos mitos, ou mithoi. Ela trata de questões relacionadas com os homens ou o humano, não com os deuses ou o divino.

Muitos especialistas associam o surgimento dos primeiros escritos históricos à monarquia de Akkad (1170-2083 a.C.) na Mesopotâmia, quando o rei unificara seus domínios sob uma autoridade única, utilizando escribas para descrever seus feitos e sua história. No entanto, a maior parte dos intérpretes atribui ao grego Heródoto de Halicarnasso (485-420 a.C.) o início de um tipo de escrita histórica na qual o historiador emergiria como figura “subjetiva”, ou seja, sem estar diretamente ligado a um poder político, possuindo certa autonomia criativa e inscrevendo seu próprio nome na narrativa sobre o passado. Heródoto, portanto, seria o autor de seu logos, condição essa que permitia estabelecer sua autoridade ou, em outros termos, a validade do que escrevia em seu tempo. Mas, para melhor compreendermos as condições de produção dessa forma de olhar o passado na Grécia antiga, é necessário que retomemos, grosso modo, o que era pensado por alguns dos contemporâneos de Heródoto, em especial alguns conhecidos filósofos da antiguidade.

A história entre os gregos e os romanos

Para os filósofos gregos a escrita histórica seria concebida a partir das mais distintas formas de relação com o mundo. No ponto de vista de Platão22 (428-348 a.C.), por exemplo, a história teria um sentido, já que: a) há ordem no universo; b) tudo é ordenado para harmonizar-se; c) uma inteligência é responsável pelo mundo; d) a verdade encontra-se nas ideias; e) existe a Verdade, o Belo e o Bem em si. Para Aristóteles (384-322 a.C.), em sua Poética, por outro lado, a história seria um gênero narrativo ou literário, inferior à tragédia, portanto um gênero menor, visto não produzir a catarse ou a apreensão de conhecimentos elevados; ela trataria de questões úteis, visto constituir-se de um relato curto, com começo, meio e fim, marcado por uma peripécia que versa sobre eventos que aconteceram. A história lidaria, assim, com o que é particular e irrepetível, não tendo a ambição de explicar o homem. Emerge desse aspecto uma questão fundamental, que ainda hoje alimenta intensos debates historiográficos acerca da ficcionalidade na história. Sendo uma narrativa, a história é, de fato, essencialmente ficcional. Dizer isso significa compreender a ficção como um veículo que traduz o que chamamos de real e não como algo que é falso, inverídico. Ficcionalizar é contar, narrar. E toda história necessita do suporte textual para existir.

Fotografia de escultura em mármore cinza claro. Rosto de homem de meia idade, cabelo curto e barba cacheada longa. Rosto bem definido, nariz pequeno e olhos bem abertos.
FIGURA 1: Busto de Platão, o original data de 370 a.C.
Fotografia de escultura em mármore cinza claro. Rosto de homem de meia idade, cabelo curto e barba cacheada curta. Rosto bem definido, nariz médio e olhos abertos.
FIGURA 2: Aristóteles.

Tais linhas apontam para o sentido textual que a história tem. Afinal a história acaba tendo uma utilidade, visto ser uma narrativa que, ao lado das demais, informa, transmite saberes, orienta e confere sentido aos homens. Essa tarefa fica clara, mesmo com os historiadores sendo considerados, no seu próprio tempo, como autores menores. Entre os gregos, Heródoto ou Tucídides (460-395 a.C.) não recebiam a mesma admiração que o poeta épico Homero, considerado infinitamente superior em forma e ideia.

Voltemos ao velho Heródoto, considerado o pai da História. Seus escritos revelam a filiação genética dos estudos do passado tanto com a literatura, como ficou exposto acima, quanto com a filosofia. Nos primórdios da humanidade, as explicações sobre o passado eram fornecidas pelos mitos, ou seja, o fundamento da história era sobrenatural, divino. Ainda hoje os mitos constituem uma fonte inesgotável de compreensão do passado de diferentes sociedades, mesmo contemporâneas. Na Grécia antiga, essa autoridade que os mitos tinham em relação ao passado, com o tempo, foi questionada. Um dos primeiros a fazê-lo foi Hecateu de Mileto, no século V a.C., que dizia, ao retornar do Egito: “vou escrever o que acho ser verdade, porque as lendas dos gregos parecem muitas e risíveis”. Pode-se dizer que em virtude desse questionamento e dessa crítica a história nasce unida à filosofia. Heródoto é, portanto, considerado pioneiro por ter sido o primeiro a dar a esse tipo de conhecimento o caráter de investigação, de pesquisa (HARTOG, 1999).

Foi nesse período que começou uma tradição que se estende até os dias atuais: de o historiador valer-se dos testemunhos, das fontes e registros existentes. Heródoto dedicou-se ao estudo das guerras greco-pérsicas (490-479 a.C), que segundo ele marcaram o triunfo dos gregos sobre a civilização oriental, garantindo sua independência e tendo sido responsáveis pela sua posterior prosperidade. Percebe-se, claramente, na obra de Heródoto, o quanto as inquietações do presente motivam a busca pelo passado, não pelas origens, pelo fundamento do povo grego, mas sobre eventos ocorridos duzentos anos antes, responsáveis pela hegemonia grega em face dos demais povos “bárbaros”.

A história que Heródoto pratica não é mais aquela que exalta a memória dos feitos de grandes heróis, mas a que procura retratar os feitos dos homens sem uma explicação divina, buscando eventos concretos e testemunhos a respeito deles. A preocupação com a escrita da história, com o discurso do historiador é uma invenção que pode ser atribuída ao grego de Halicarnasso. Ele coloca a voz do historiador como a de um juiz que reúne testemunhos e, com imparcialidade, pretende desvendar a verdade. Domínio que anteriormente era disputado pelo aedo, que contava lendas e histórias sobre o passado do kleos (glória imortal para o herói), evitando seu esquecimento. Agora esse conhecimento estaria seguro mediante a palavra escrita, evitando-se o esquecimento, firmando um ponto de vista, atribuindo-lhe critérios de veracidade e de autoridade, bem como não se ocupando exclusivamente de feitos heroicos, mas daqueles que interessam à coletividade.

Fotografia de escultura em mármore cinza claro. Homem de meia idade, calvo na parte superior frontal da cabeça e barba média, sentado em um banco. Usa um manto sobre o ombro esquerdo e nas pernas. Senta inclinado, com o braço direito apoiado na perna segurando a cabeça. O braço direito segura um papiro.
FIGURA 3: Heródoto.

Heródoto é o protótipo do historiador, pois usa seu nome próprio, escrevendo muitas vezes na primeira pessoa do singular e também se servindo dos depoimentos, narrados na terceira pessoa. Ele seculariza seu discurso e substitui as musas e os heróis como autor do relato. E explicita a tensões entre o passado e o presente, entre o desenvolvimento do muthos (da intriga) e o horizonte de expectativa dos leitores. Com suas Histórias, Heródoto torna-se um historiador que não cansa de se interrogar sobre sua identidade. Segundo François Hartog, o relato histórico com o pai dos historiadores faz acreditar que o olho escreve, o que induz a conferir a primazia à percepção, à oralidade sobre a escritura, que é secundária. Quando o ver falha, resta a possibilidade do recurso ao que se ouviu dizer, o que ainda confirma a supremacia da oralidade (DOSSE, 2003, p. 16). Heródoto não provocará, contudo, um corte radical entre aedos e historiadores. Para Hartog, Heródoto constitui a “nomeação de um novo lugar e [...] sua circunscrição nas práticas discursivas e nos saberes em curso: historíe”. Ainda segundo Hartog:

Heródoto de Halicarnasso apresenta aqui sua historíe, para impedir que o que fizeram os homens, com o tempo, se apague da memória e para que grandes e maravilhosas obras, produzidas tanto pelos bárbaros quanto pelos gregos, não cessem de ser retomadas; em particular, aquilo que foi a causa de eles entrarem em guerra uns contra os outros. Entre os persas, os doutos (logoi) dizem que os fenícios foram a causa do desacordo. (HARTOG, 1999, p. 17)

Tucídides (460-395 a.C.) apagará mais ainda, na sequência de sua narrativa, as marcas da primeira pessoa, na medida em que fará da vista (ópsis) o critério essencial capaz de tornar possível uma história verdadeira. Da autópsia tucididiana ao ideal de uma história positivista, em que o historiador não seria mais que um olho (leitor, é verdade, mas espectador), no limite, o olho de ninguém, indica-se uma via (aporética) pela qual a historiografia não cessou de caminhar: o historiador como voyeur (HARTOG, 1999, p. 28). Para falar da Guerra do Peloponeso, da qual foi contemporâneo, Tucídides quer buscar suas causas reais, procurando evitar o envolvimento passional e político dos dois lados, buscando a imparcialidade. Para ele, apenas o que fosse verdadeiro e o que foi realmente visto deveriam ser narrados. Com Tucídides surge o imperativo da precisão por parte do historiador, da busca pelas certezas, pelas provas, como em um tribunal. Esse tipo de história constituirá um modelo seguido até meados do século 19, que defende a imparcialidade, a crítica dos testemunhos, a avaliação dos valores e interesses envolvidos e o estudo etiológico (das causas).

De todo modo, cabe frisar que na Antiguidade o conceito de “História” existia, mas era utilizado principalmente para a forma, para o invólucro, e apenas em segundo plano para todo o conjunto de ações, de acontecimentos e de transcursos que ela possuía. Em termos do seu conteúdo, ele visava muito mais à soma dos acontecimentos do que à relação entre eles, que era estabelecida na forma das Historie(n). Não se buscava um movimento dinâmico, uma grande corrente, onde se pudesse determinar um lugar, cuja coerência se pudesse assumir, cujo sentido se pudesse procurar (MEIER, 2013, p. 47).

Fotografia de escultura em mármore cinza claro. Homem adulto em pé, de cabelo curto. Usa um manto enrolado no braço esquerdo e na cintura. A mão esquerda segura o manto da cintura e uma lança. O braço direito está levantado em posição de aceno.
FIGURA 4: Políbios.

O historiador grego Políbios (203-120 a.C.), ao escrever suas Histórias, fortalece a compreensão da utilidade das histórias, seu potencial orientador para os povos e seus líderes. Ele defende uma história pragmática e cronológica, que deveria ser útil para o presente, buscando conhecer a origem e suas causas, bem como seu ciclo. Para Políbios, a história obedeceria uma sequencia divina, uma sucessão de nascimento e morte. Analisar as fontes, apresentar aspectos geográficos para os leitores e destacar as ações políticas seriam a meta fundamental dos historiadores. Sua obra procura mostrar por que Roma derrotou a Grécia.

Foi o historiador romano Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.) quem sintetizou a função que aquela pluralidade de histórias deveria, sobretudo, atender. Com a expressão Historia magistra vitae (História mestra da vida), Cícero esclarecia a necessidade prática sobre a qual a História deveria se assentar: o fornecimento de exemplos para uma orientação das ações humanas no mundo. O ciclo de influência de Cícero perdura até a experiência histórica cristã, chegando até a modernidade. Boa parte de sua obra filosófica foi catalogada, nas bibliotecas dos mosteiros, como coletânea de exemplos, sendo amplamente disseminada. A maneira como a máxima ciceroniana foi apreendida pela sociedade medieval europeia será, portanto, um dos nossos próximos temas.

Fotografia em preto e branco. Busto de homem adulto de cabelo curto. Está virado para a direita. Rosto bem definido, nariz grande pontiagudo, olhos bem abertos. Usa uma manta sobre os ombros.
FIGURA 5: Tacito.
Fotografia de escultura em mármore cinza claro. Busto de homem de meia idade, calvo na parte frontal da cabeça. Está com a cabeça levemente virada para a esquerda. Rosto bem definido, nariz médio e olhos abertos. Usa uma manta que o envolve pelos ombros.
FIGURA 6: Marco Tulio Cícero.

Outros historiadores muito influentes da Antiguidade foram Plutarco (46-120) e Tácito (55-117). Este é considerado o maior historiador romano. Seus Anais, História e também Germânia influenciaram boa parte dos historiadores e cronistas medievais. Sua obra tinha um fundo moral, buscando retratar os homens em suas virtudes e vícios, procurando mostrar que a história romana era uma história de decadência. Tácito insiste em buscar as causas FIGURA 4: Polibios e os efeitos dos fatos, relacionando-os com os interesses e as pai xões humanas, construindo retratos psicológicos sugestivos. Uma de suas imagens mais poderosas é a de Nero incendiando Roma.

A história medieval

Diferentes autores apontam como principal característica da história medieval, em relação à história produzida na Antiguidade, o fato de que ela rompe com uma perspectiva de eternidade, representada por um tempo cíclico, inaugurando uma concepção linear de tempo, inscrevendo na História o caráter da Providência divina. Tal concepção teria sua origem, sobretudo, no pensamento de filósofos como Santo Agostinho (354-430), para quem as influências da expansão do cristianismo far-se-iam sentir de maneira bastante evidente.20

Pintura. Homem de meia idade, barba e cabelo branco, em pé. Usa uma mitra na cabeça, luvas brancas, e veste uma batina preta com capuz por baixo de uma capa estampada em diferentes. No fundo há uma estrutura de porta com a parte de cima em formato de arco e nas duas laterais superiores um triângulo laranja.
FIGURA 7: Santo Agostinho.

Agostinho de Hipona, como era conhecido, escrevia à época da dissolução do Império Romano do Ocidente e incorporava em suas reflexões filosóficas a importância de se pensar a distinção entre as dimensões terrena e espiritual da humanidade. Em sua obra A cidade de Deus (426), o filósofo enfatizava a necessidade de se incorporar o tempo como categoria necessária para pensar essa dupla dimensão existencial da vida humana. Para Agostinho, o tempo não teria uma existência isolada e só poderia ser apreendido pelos homens por meio de uma atividade chamada “distensão da alma” (distentio animi). Esta seria a compreensão dos três tempos: pretérito, presente e futuro, de modo que fosse possível lembrar do passado, viver o presente e prever o futuro. Agostinho afirmava que a alma é quem pode medir o tempo e essa “forma de mensurar” atestaria a existência do tempo apenas em caráter psicológico.

Na alta Idade Média surge uma concepção linear do devir humano, relacionando a História com os textos bíblicos, ou seja, marcando o surgimento desta com a Criação e seu limite com o Juízo Final. A marcha da humanidade adquire, portanto, um caráter religioso. Alguns historiadores, entre eles Georges Duby24, acreditam, ao contrário, que a História Medieval mantém afinidades eletivas com a História produzida na Antiguidade, visto que mantém uma concepção linear do tempo, que no Ano Mil levaria ao surgimento de uma nova era, bem como à convicção de um agente sobrenatural em relação aos desígnios da História.25 Nesse momento há uma enorme profusão de hagiografias, seguida pela escritura de cronologias e anais. O grande nome desse período é Gregório de Tours (538-594 d.C.) e sua História dos Francos.

No século XII há uma alteração nesse quadro. Uma nova consciência da História coloca outra preocupação, particularmente junto à nobreza e aos Estados em processo de nascimento, de uma história dos feitos humanos. O conflito franco-inglês (a Guerra dos Cem Anos), ocorrido entre os séculos XIV e XV, leva os príncipes a se interessarem pela História e pelo passado. Surgem os cronistas oficiais. Também as cruzadas inauguraram uma preocupação em se fazer relatos não mais exclusivamente relacionados ao sagrado. Jean Froissart (1337-1405) é um dos grandes nomes desse período.

Fotografia de uma escultura em mármore. Homem de meia idade em pé, de cabelo curto e barba média. Mão direita levantada e o braço esquerdo rente ao corpo vestindo uma túnica comprida com capuz e mangas longas. Frase “Gregoire de Tours” esculpida na base, abaixo dos pés.
FIGURA 8: Gregorio de Tours.
Fotografia de escultura de mármore. Homem adulto em pé, de cabelo curto, sem barba segurando uma caneta de pena com a mão direita e um caderno com a esquerda, seus braços estão rentes ao corpo e ele está vestindo uma túnica comprida com mangas longas e um chapéu sem aba. Esculpida na base, a palavra “Froissart”.
FIGURA 9: Froissart.

Os pensadores e historiadores do Renascimento irão menosprezar os esforços e as histórias produzidas durante o período que preferem denominar como Idade das Trevas. Tornam-se severos críticos das narrativas produzidas por cronistas e historiadores medievais, vendo nelas a expressão de superstições e equívocos. Não por acaso, subestimaram preciosas informações e uma diversidade de textos que hoje têm sido revalorizados pelas novas gerações de historiadores. Mas, do mesmo modo como os historiadores da Antiguidade ou do Medievo, continuaram a insistir em valores eternos ou morais para suas histórias.

Parece interessante que, mesmo durante a Idade Média, a produção de textos relacionados ao passado era vista como gêneros inferiores à Filosofia, ao Direto e às Artes. Tratava-se de um saber acessório e ilustrativo em relação à sabedoria contida na Bíblia. Não por acaso diferentes historiadores se empenharam na tarefa de relacionar a história humana ao conhecimento existente nos textos bíblicos. Somente no século XIV é que a História passa a ser um gênero específico e utilizado nas bibliotecas e mosteiros para identificar determinados textos.

Fotografia. Folha de papel envelhecida de cor bege-escuro com textos escritos na cor laranja e marrom e rascunhos imagéticos abstratos feitos nas cores laranja e verde.
FIGURA 10: Página de alguns manuscritos da Etymologiae de Isidoro de Sevilha.

No início, a escassez de documentos e fontes levou os historiadores medievais a se basearem nos clássicos produzidos na Antiguidade. Lentamente a produção histórica medieval tomava consistência. Os arquivos eram exíguos, sua conservação precária. As bibliotecas contavam apenas com algumas dezenas de exemplares. As fontes eram de difícil acesso. Lentamente os relatos orais passaram a ser considerados dignos de crédito, graças em grande medida às Etimologias de Isidoro de Sevilha (560-636).

Com o tempo, o homem medieval percebeu a necessidade de fixar cronologias (baseadas no tempo inaugurado nas escrituras) e de olhar criticaente os documentos, verificando sua autenticidade ou não. Aperfeiçoamentos técnicos levaram ao cotejamento e a uma considerável melhoria na exatidão das informações utilizadas. A pretensão de apresentar afirmações coerentes com determinado tipo de verdade foi se aproximando do conceito de estoire ou historie, um desenvolvimento que naturalmente só chegou a uma expansão após o século XV.

A produção de textos históricos passa a se diversificar e distintas categorias historiográficas, como a crônica, os annales, a vita, a gesta, a história popular e a poesia histórica surgem na Europa. Aos poucos uma perspectiva histórico-universal se estreitava, sendo possível que analogamente aparecessem crônicas de objetos parciais como a crônica de cidades e ordens religiosas. Passada a Idade Média, a contribuição dos antigos seria incorporada pela historiografia posterior, de Tácito e de Cícero, que, como vimos, teria como principal traço seu caráter exemplar, com o predomínio de lições morais e de figuras retóricas que muitas vezes prescindiam das provas documentais.

O método e a função dos antigos instrumentos educacionais não se modificaram substancialmente com a cristianização, mas a história não conseguiu ficar imune frente ao novo objetivo educacional que se cunhara. Se para Santo Agostinho seria possível avançar até a verdade eterna através das forças sensoriais e espirituais de uma pessoa, então também a hierarquia e a posição da Historie deveriam mudar. Nesse contexto, os acontecimentos históricos se deviam às ações humanas, mas concretizar-se-iam dentro de uma dada ordem temporal, condicionada pela figura divina. A história, portanto, pertenceria aos dois âmbitos: aquele do homem e aquele de seu Criador. Isso garantiria ao homem medieval uma dupla importância na expansão do conhecimento humano em direção à verdade eterna.26

Com isso, a historia, no seu conjunto, não era apenas útil para a pedagogia da salvação, mas recebia também um ponto de referência transcendental. Tanto o transcurso temporal quanto a concretização das correntes de acontecimentos não se referiam mais a um objetivo relativo ao mundo – premissa que havia levado à crença no caráter definitivo do império romano –, mas toda a história da humanidade (também aquela ocorrida fora de grandes impérios) convergia para uma unidade, cujo sentido independia totalmente da permanência de fatores imanentes ao mundo conforme os desígnios da Providência.

Como consequência disso, o transcurso dos acontecimentos visto isoladamente continha pouca verdade, somente como parte constitutiva da realidade total imanente e transcendente é que se abria seu significado completo. Do mesmo modo que na Antiguidade, também na Idade Média bons exemplos históricos deveriam incentivar a prática do bem e o afastamento do mal. A apresentação do passado deveria justificar a situação do presente ou auxiliar em sua correção. De fato, por séculos vigorou a crença de que as grandes ações do passado poderiam orientar o presente, como se se tratasse de uma bússola moral destinada a estabelecer a melhor forma de conduta dos grandes homens em seu próprio espaço de experiências.27

História e filosofia da história na modernidade europeia: experiência temporal e sentido histórico

Ao tratarmos dos problemas circunscritos ao conceito de História na Idade Moderna, é necessário compreender as inúmeras interpretações e leituras sobre o assunto que nos são trazidas pela historiografia contemporânea. Primeiramente, é sabido que não existe um consenso entre os historiadores sobre um período concreto ou uma definição única a respeito do que significa o fenômeno da chamada “modernização” ocidental.

Vimos nos tópicos anteriores que tanto na Antiguidade quanto ao longo do medievo a História assumira um caráter pragmático, no qual o “aprender com a história” tomara formas em simetria com concepções políticas, temporais e filosóficas nas sociedades de cada um desses períodos. Tal lógica não seria diferente durante a Idade Moderna, de modo que a maneira de conceber a relação entre passado, presente e futuro nos distintos Estados europeus sofreria uma forte guinada, sobretudo após a descoberta do Novo Mundo e a eclosão das reformas religiosas no século XVI.

Bastante elucidativas nesse sentido são as digressões de Reinhart Koselleck28 a respeito da temporalidade e da visão de História entre os modernos europeus. Segundo o historiador alemão, a Era Moderna seria marcada, principalmente, pela radicalização da experiência temporal humana, quando, em detrimento do caráter basicamente estável do tempo religioso medieval, a modernidade traria a emergência de uma temporalidade essencialmente dinâmica, humana e inconstante. A Revolução Copernicana, o desenvolvimento da técnica, o descobrimento do globo terrestre com suas populações vivendo em fases diferentes de desenvolvimento, a dissolução do mundo feudal pela indústria e pelo capital e, depois de 1789, a Revolução Francesa foram fatores que contriburam para tornar a sensação de surpresa, de ruptura da continuidade, uma constante da modernidade. Esse tipo volúvel de relação temporal é exemplificado por Koselleck a partir das distintas filosofias da história que passam a surgir principalmente ao longo do século XVIII ocidental.

Segundo Koselleck, até meados do século XVIII, era perfeitamente razoável contar com a “futuridade do passado”, ou seja, com a expectativa de que o futuro se assemelharia ao passado. Esse era o sentido da máxima ciceroniana historia magistra vitae, que resume a configuração historiográfica que prevalecera até então: a história como uma coleção de exemplos que serviam à conduta moral dos homens. Tal concepção magistral de história assentava- -se sobre uma estrutura temporal estática que articulava passado, presente e futuro em um espaço contínuo (DUARTE, 2012, p. 75).

Na modernidade, contudo, com a emergência de um futuro diferente do “futuro passado”, um futuro aberto, indeterminado e indeterminável pelas experiências vividas, o passado já não poderia mais fornecer exemplos. A radicalidade do futuro, vivido no presente como aceleração, separou as dimensões do tempo, anulando a utilidade da experiência passada.

É importante para nossa proposta entendermos essa mudança radical descrita por Koselleck para que possamos compreender o sentido adquirido pela ideia de História em tempos modernos. Segundo o historiador, a maneira pela qual a consciência filosófica europeia lidou com essa experiência, no final século XVIII, foi por meio da ordenação diacrônica e hierárquica dos vários tempos em um movimento único, linear e universal, denominado “progresso”. Essa singularização radical se deu, também, entre outros vocabulários políticos, inclusive no conceito de história próprio à modernidade: a história tornou-se um singular coletivo, um metaconceito transcendental, que sintetizava relato e acontecimento e englobava as várias histórias individuais, que, até então, eram percebidas como desconexas entre si (DUARTE, 2012, p. 75). nvolvendo toda a humanidade, a história do progresso é um percurso estruturado de desenvolvimento, que se inicia na barbárie e se orienta na direção de um futuro luminoso.

No entanto, quais seriam as principais características do modelo de escrita histórica oriundas dessa nova experiência temporal? Um aspecto central a se considerar, no que diz respeito aos protocolos discursivos das narrativas históricas da Época Moderna, é o recurso à eloquência e à retórica, expedientes obrigatórios nos livros antigos. De certo modo, a presença desses recursos nos textos dos séculos XVI e XVII expressa a tensão entre a racionalidade e a sensibilidade, que era uma das marcas registradas do discurso histórico. Os elementos que compunham a ars rhetorica daqueles tempos serviam como instrumento eficaz a preencher o vazio deixado pelo aspecto catártico exigido nos demais gêneros narrativos, vistos como mais elevados pelos antigos, segundo a prescrição fundadora de Aristóteles. Essa necessidade de angariar respostas afetivas explicita a dimensão meta-histórica sugerida por Koselleck, associando-se, sobretudo, na oposição existente no par amigo-inimigo.29

De fato, toda história, ao inserir os indivíduos em determinados lugares, retratando suas ações e o desdobramento destas no curso dos eventos narrados, destacava essa dimensão afetiva. Um nós a diferenciar-se dos outros. Na época moderna, apelou-se cada vez mais para construções narrativas mescladas de crítica e de razão, nas quais o convencimento obtido pela eloquência lentamente perdeu espaço para a exposição lógica e refletida, agora amparada no exame das fontes. O declínio da ars rhetorica no discurso histórico passou a ser inversamente proporcional ao desenvolvimento da empiria e da crítica. Sendo assim, poder-se-ia falar da própria transformação da natureza retórica nos textos históricos. Na atualidade, referir-se a regimes de historicidade implica, necessariamente, pensar na ampliação do espaço ocupado por “regimes de cientificidade”.30

É importante observar que, de forma predominante, até os séculos XVII e XVIII os historiadores procuraram emular os grandes nomes da Antiguidade, ou mesmo os clássicos modernos reconhecidos como padrão elevado de moral e de estilo. Junto com Heródoto, o historiador romano Tito Lívio (57 a.C.-17 d.C.) foi outra influência de destaque no período.31 Gênero literário por excelência ao longo dos séculos XVI e XVII, a história não se empenhou em explicitar os seus métodos. A exigência de utilização de provas eram difundidas apenas entre os eruditos, em minoria entre aqueles que se incumbiam de narrar o passado, dispensando-se, portanto, remissões mais rigorosas às fontes. De todo modo, seja em autores tão distintos como Maquiavel, como Bodin ou como Voltaire, fica evidente que o discurso político era uma das vocações da história, conforme acentuou Philippe Ariès.32

De forma recorrente, seja na obra de Mably32, no tratado de Fénelon34, como em muitos outros textos históricos da Época Moderna, a presença das preceptivas de matriz tucididiana soa como referência maior. E não somente pelo conteúdo político das experiências (note-se que quase sempre há a grave presença de um vulto da política em processo de formação intelectual e de caráter), mas ainda pelo pragmatismo das ações necessárias. Por meio de Maquiavel, de Bodin, de Fénelon, de Mably, de Voltaire e de muitos outros autores modernos, nota-se como os efeitos de exemplaridade dos eventos desencadeados por alguns líderes do passado preenchiam o núcleo da narrativa histórica. Os acontecimentos descritos por narrativas à moda da Historia magistra vitae destinavam-se a ser incorporados como aspectos de sabedoria, com o fito de gerar as atitudes recomendáveis e, assim, efetivar um programa eficaz de ação para a vida.

Todavia, uma abordagem acerca do pensamento histórico moderno não se mostraria completa caso a influência do e de demais movimentos intelectuais com ênfase na subjetividade humana não fosse apontada. É imperativo que também compreendamos o desenvolvimento do caráter científico do conhecimento histórico na modernidade a partir do choque entre as pretensões da racionalidade filosófica iluminista e os apontamentos em torno da relatividade do pensar e da subjetividade humana surgidos na Europa ao longo dos séculos XVIII e XIX.

O historiador Georg Iggers nos aponta como o Romantismo, o Pietismo religioso e o Tradicionalismo se expressavam de maneira mesclada no pensamento de nomes como J. W. Goethe (1749-1832), Johann Herder (1744-1803), Johann Winckelmann (1717-1768), Friedrich Schiller (1759-1805) e Humboldt (1769-1859), em sua tentativa de harmonizar uma inter-relação entre a diversidade humana e os aspectos, tanto racionais quanto irracionais, de sua personalidade. Todo indivíduo seria diferente e a tarefa incumbida de cada um seria desenvolver sua personalidade única ao máximo.35

Inicialmente apenas uma atitude, um estado de espírito, o Romantismo tomaria mais tarde a forma de um movimento, e o espírito romântico passaria a designar toda uma visão de mundo centrada no indivíduo e na especificidade nacional. Os autores românticos voltavam-se cada vez mais para si mesmos, retratando o drama humano, amores trágicos, ideais utópicos e desejos de escapismo. Se o século XVIII foi marcado pela objetividade, pelo Iluminismo e pela razão, o início do século XIX seria marcado pelo lirismo, pela subjetividade, pela emoção e pelo eu.

A partir da contestação das pretensões universalistas da racionalidade iluminista, a visão de mundo romântica atentava para duas categorias centrais do pensar historiográfico na modernidade: as ideias de individualidade e desenvolvimento. Na segunda metade do século dezoito, Herder havia enaltecido a língua e a cultura como essenciais possibilidades de acesso e compreensão dos feitos humanos na história. As identidades nacionais apenas poderiam ser entendidas a partir da percepção do que lhes fosse específico/individual, de modo que sua cultura (Kultur) deveria ser desvendada sob a perspectiva do desenvolvimento formativo que lhe fosse próprio.36

Estavam lançadas as bases do que seriam as preocupações da História acadêmica europeia do século dezenove. Tanto Ranke quanto Michelet seriam fortemente influenciados pelas premissas românticas e pela atmosfera política formativa das identidades nacionais daquele período. O historicismo e o cientificismo historiográfico dos últimos dois séculos não podem ser compreendidos sem esse olhar sobre as discussões filosóficas do século dezoito e o seu insumo nas páginas dos principais trabalhos surgidos entre os historiadores acadêmicos durante o oitocentos e ao longo do século vinte.

O alvorecer moderno havia estabelecido os pilares de uma forma de pensar centrada no sujeito, nas individualidades nacionais, bem como na humanidade e no potencial das coletividades humanas. A moderna visão de mundo surgida na Europa e difundida também nas Américas estaria vinculada a uma maneira distinta de se pensar o passado e às novas possibilidades de futuro que se punham. Isso traria consequências óbvias para o fazer historiográfico e os procedimentos práticos dos historiadores. As condições que propiciaram o surgimento dessas distintas formas do “método histórico” serão o tema do nosso próximo capítulo.

Tarefa quase impossível é tentar definir o Romantismo, em quaisquer de suas vertentes, seja na Alemanha, na França ou no Brasil. A despeito da complexidade que o conceito assume em diferentes formações socioculturais, existem alguns elementos comuns. Para Alfredo Bosi, ele representa, na França, um ressentimento da nobreza com a perda de seu espaço social, com um quê de nostalgia e sentimentalismo. Sua principal marca é o eu romântico.37 Duas referências obrigatórias em se tratando do Romantismo seriam as obras de Chateaubriand38 e o romance Ivanhoé de Walter Scott39. Diferentes autores nesse período procuraram recuperar aspectos positivos da Idade Média, tão duramente criticada no Renascimento. Alguns dos valores medievais, não por acaso, serão entendidos como fundamentos, como raízes na construção da nação.

Na Alemanha os autores costumam dividir o Romantismo em duas vertentes, a de Iena e a de Heidelberg. Na primeira ele dá vasão à fantasia, à crítica literária e à reflexão filosófica sobre a existência humana. Em Heidelbeg ele se fundamenta nas tradições, no passado histórico, na mitologia, nos estudos filológicos, na pesquisa histórica e tem uma forte vocação nacionalista. O movimento absorveu o impacto causado pela Revolução Francesa, pela filosofia de Fichte e pela obra de Goethe. Grosso Modo, propõe um retorno aos mitos fundadores, à origem da pátria. Um de seus grandes expoentes, Friedrich Schlegel.

Pintura em preto e branco. Homem adulto, cabelo ondulado na altura dos ombros, sentado, de perfil, com apenas o lado esquerdo de sua face visível. Ele usa uma blusa branca de manga longa por baixo de um terno preto e está com a mão direita dentro do bolso do terno esquerdo e segura um lenço com a mão esquerda. No fundo, mostra uma parede decorada com ornamentos em formato de folhas e um quadro.
FIGURA 11: Goethe foi uma das mais importantes figuras da literatura alemã e do Romantismo europeu, nos finais do século XVIII e inícios do século XIX.
Pintura. Homem na faixa de 40 anos, com o cabelo de cor marrom alaranjado bagunçado. Ele está escorado em um muro baixo com folhas verdes e usa uma blusa branca de gola alta por baixo de um terno e um sobretudo que vai até o pé, e uma calça marrom. No fundo, o céu num tom cinza azulado e uma construção em pedra com algumas partes quebradas.
FIGURA 12: Chateaubriand (1768-1848) foi o fundador do romantismo na literatura francesa.

A Revolução Francesa trouxe a promessa da liberdade, da emancipação humana concreta mediante a ação política. O filósofo Fichte, por sua vez, introduz a importância do eu como síntese responsável pela compreensão do mundo. Sua filosofia é profundamente idealista e subjetiva e cria mundos autônomos, distantes da natureza. O distanciamento e a subjetividade seriam a marca do ato criador. Já Goethe, em sua obra Wilhelm Meister, inovou a forma de narrar introduzindo a forma romance na literatura ocidental, sob uma roupagem épica, fundindo poesia e prosa, crítica e genialidade, expressão e reflexão. Em Iena o romantismo está voltado para a reelaboração da cultura popular, dos contos, das lendas e das fábulas40. O romantismo alemão representou uma forte crítica, bem como uma oposição ferrenha ao expansionismo francês. O despertar de uma consciência nacional acendia as paixões e o nacionalismo. Contribuição significativa seria o Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto), movimento de reação aos modelos clássicos da Antiguidade e responsável pelo rompimento com uma tradição literária e filosófica antiga, visando permitir uma nova consciência histórica marcada pela ideia de modernidade.

Desse modo, em suas linhas mais gerais, pode-se apreender o Romantismo por seu apreço pela História, pela valorização das tradições do passado, pela exaltação dos valores sociais e pela construção de uma heroicidade, marcada pela defesa das origens, da terra e da pátria. Inspirados pelo civismo e pelo patriotismo nascentes, os românticos buscam retratar modelos ideais, exemplares para a história da nação.41

O historiador François Dosse fala de uma estética romântica para a história, demarcando-lhe data precisa de fundação na França. Teria surgido em 1830. Para ele os efeitos da Restauração – período compreendido pelo restabelecimento das monarquias derrubadas por Napoleão Bonaparte, entre 1814 e 1814, que redesenharam as fronteiras dos países europeus – se fizeram sentir em todas as sociedades. Igualmente se fez sentir a compreensão do significado que a Revolução Francesa teria imposto ao mundo contemporâneo. Assim, a partir de 1815 teve início uma verdadeira “luta historiográfica” (DOSSE, 2003, p. 127) colocando de um lado os historiadores liberais, que constituem uma nova geração revolucionária, e de outro os eruditos representantes da reação aristocrática. De qualquer modo, ambos os grupos sabiam que era preciso consolidar o novo regime político, mantendo-se a legitiade, superando a descontinuidade de revolução de 1789 e procurando uma ligação com o passado medieval.

Destacam-se nessa nova escrita da história três elementos: o progresso da erudição, um avanço nas técnicas de pesquisa e de ordenação documental e, por fim, um caráter interpretativo que valoriza a subjetividade. Conquanto desejassem fazer ciência, os historiadores desse período não abriram mão das singularidades. O sujeito dessas histórias vai ser, na França, como em outros países, a nação. A história da pátria é, assim, o eixo que articula a coerência da narrativa e lhe atribui um sentido.

Dosse relaciona dois historiadores desse período. Augustin Thierry (1795 -1856), um dos grandes representantes dessa geração que afirmou que a França ainda não tinha uma história. Uma de suas metas foi reavaliar a importância das pessoas de baixo, dos anônimos (DOSSE, 2003, p. 129). Apaixonado por Ivanhoé, defendia uma história romanceada, cujo texto tenha a ambição de construir arte e ciência ao mesmo tempo. O mais importante representante dessa historiografia romântica foi, sem dúvida, Jules Michelet (1798-1874), cuja obra só pode ser compreendida a partir do impacto das revoluções de 1830. Também ele afirma que a França não possuía uma verdadeira história. Segundo ele, sua obra foi concebida a partir do “clarão de Julho” (2003, p. 130). A análise que Dosse faz da obra de Michelet enfatiza seu misticismo religioso cristão. Sua originalidade surge quando defende o pressuposto de que a finalidade da história é ressuscitar os mortos, reacender as cinzas apagadas do passado. Para Michelet o povo é a pedra filosofal da história, personagem esquecido pelos historiadores que o antecederam, povo que equivale à nação. A Revolução Francesa, para ele, corresponde à Encarnação, o sacrifício da pátria mergulhada em sangue, rumo à Redenção. Michelet representa ainda uma ruptura em relação à história-crônica, defendendo uma história totalizante, que permitisse o ressurgimento integral do vivido (2003, p. 133). O maior historiador da França viveu pobremente em Nantes e em Paris. Sua obra visa uma totalidade quase profética que quer reviver o passado, influência certamente provocada pelo contato com o pensamento historicista alemão.

Pintura.Homem de meia idade, cabelo liso, curto e branco. Usa blusa branca por baixo de um terno, uma calça preta e um sapato social preto. Está sentado em uma cadeira de madeira com um dos braços apoiado na mesma. Do lado direito da cadeira há três livros de capa marrom e grande espessura um em cima do  outro, e do lado esquerdo há uma mesa com três livros abertos.
FIGURA 13: Jules Michelet, considerado o maior historiador francês do séc. XIX, combina a exigência científica do estudo da História com a visão apaixonada dos acontecimentos.

Michelet foi um crítico mordaz de seus pares. Não poupou Guizot, Thierry, Mignet, nem Thiers42. Segundo ele, a maior fraqueza de seus colegas historiadores residia nos limites de suas informações. Como chefe da Seção Histórica dos Arquivos Nacionais da França, é evidente que Michelet tinha à sua disposição um conjunto expressivo de documentos sobre o passado francês. Também afirma que não conseguiram se desvencilhar do político, negligenciando outras instâncias da realidade. Indica ainda que são contaminados por apriorísticas ideológicas. Lamenta que não perseguissem uma história totalizante, que seguisse a vida em todas as suas vias (BOURDÉ; MARTIN, 1994, p. 83-84). Imbuído das ideias do romantismo, faz uma defesa vigorosa da subjetividade do historiador. Não concorda que o historiador deva apagar-se; ao contrário, exige que esteja presente com suas paixões e emoções em todos os momentos de sua escrita. Sua obra constitui, ainda hoje, rico manancial já descoberto e com inúmeros temas a suscitar novas gerações de historiadores. Sua abordagem psicológica e social foi deveras inovadora e tratou de objetos até então ignorados, como as feiticeiras, as mulheres, o povo, os sentimentos, condições de vida, famílias, alimentação, vestuário. Perscrutou igualmente o irracional, o universo das heresias, dos sortilégios. Valorizou os costumes e a cultura popular. Conforme Michelet, para reencontrar a história, seria preciso segui-la pacientemente em todos os seus caminhos, formas e elementos. Mas também seria preciso uma paixão maior ainda, refazer e restabelecer sua dinâmica, a ação recíproca dessas diversas forças em um poderoso movimento que se tornaria vida novamente (CAIRE-JABINET, 2003, p. 95).

Longe da França, na Inglaterra o conservadorismo dá a tônica para a História. A história romântica na Inglaterra apresenta grandes nomes como Gibbon e Macaulay, unânimes em escrever uma história liberal, desprovida de qualquer exaltação à revolução, compreendida por esses autores com anarquia. Na Alemanha também encontramos um panorama bastante diverso.

Contudo, como visto acima, a História dos modernos e românticos se caracterizaria principalmente por sua associação à dimensão temporal da existência humana, pela busca de suas origens, de sua essência e de seus desenvolvimentos, a partir do vínculo a teorias do progresso, da evolução e teorias da descontinuidade histórica, significados das diferenças culturais e históricas, suas razões e consequências. Em suma, não é possível compreender o olhar histórico da modernidade sem uma melhor aproximação das distintas filosofias da história que emergiram no continente europeu ao longo dos últimos quatro séculos.

22
Cf. Fédon (387 a.C.), um dos grandes diálogos de Platão – juntamente com A República e O Banquete, – no qual ele retrata a morte de Sócrates. [Ver no texto]
23
Cf. CAIRE-CABINET, Marie-Paule. Introdução à historiografia. Bauru: Edusc, 2004. [Ver no texto]
24
Georges Duby (1919-1996) foi um dos mais importantes medievalistas franceses, vinculado à escola dos Annales. Autor de obras fundamentais como O ano mil, O tempo das catedrais, O domingo de Bouvines, entre outras. [Ver no texto]
25
Cf. BOURDÉ, Guy; MARTIN, Hervé. A História na Idade Média I e II. In: ______. As escolas históricas. Lisboa: Europa-América, 1987. [Ver no texto]
26
Cf. CAIRE-CABINET, Marie-Paule. Introdução à historiografia. Bauru: Edusc, 2004. [Ver no texto]
27
Ver: GUMBRECHT, H. U. Depois de aprender com a história. In: ______. Em 1926, vivendo no limite do tempo. Rio de Janeiro: Record, 1999; RANGEL, M. M. Algumas reflexões sobre a ciência histórica a partir de Hans Ulrich Gumbrecht. Revista Pontes, n. 20, 2010. [Ver no texto]
28
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. [Ver no texto]
29
Ver: KOSELLECK, R.; GADAMER, H.-G. História y hermenêutica. Buenos Aires: Paidós, 2003. [Ver no texto]
30
Ver: HARTOG, F. Os antigos diante deles mesmos; o caso grego: do ktêma ao exemplum passando pela ‘arqueologia’. In: ______. Os antigos, o passado e o presente. Brasília: Editora da UnB, 2003; HARTOG, F. Chateubriand: entre l’ancien et le nouveau regime d’historicité. In: ______. Regimes d’historicité. Presentisme et experiences du temps. Paris: Seuil, 2003. [Ver no texto]
31
Cf. HAZARD, P. Crise da consciência europeia. Lisboa: Cosmos, 1974. [Ver no texto]
32
ARIÈS, P. O tempo da história. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989 [Ver no texto]
33
Gabriel Bonnot de Mably (1709-1785), também conhecido como Abbé de Mably, foi um filósofo francês que se dedicou estudo da política. Entre seus trabalhos estão a redação do projeto do tratado que Voltaire entregou a Frederico II da Prússia. Destaque especial à obra Observações sobre a história da França (1765). [Ver no texto]
34
François Fénelon (1651-1715) foi um teólogo católico, poeta e escritor francês, cujas ideias liberais sobre política e educação esbarravam contra o status quo da Igreja e do Estado dessa época. Pertenceu à Academia Francesa de Letras. Escreveu Les Aventures de Télémaque (1699), seu livro mais conhecido, uma crítica implícita ao absolutismo. [Ver no texto]
35
Cf. MALERBA, Jurandir. Lições de história. Rio de Janeiro: FGV, 2013. [Ver no texto]
36
Cf. MAYOS, Gonçal. Ilustración y Romanticismo; Introducción a la polémica entre Kant y Herder. Barcelona: Editorial Herder, 2004. [Ver no texto]
37
BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2004. [Ver no texto]
38
O escritor francês, François-Renè Chateaubriand (1768-1848) foi o fundador do romantismo na literatura francesa. Seu auge foi a obra O gênio do Cristianismo (1802) e duas trágicas histórias de amor sobre norte-americanos nativos, Atala (1801) e Renè (1802), exemplificando a melancolia, estilo poético que se tornou típico da ficção romântica. [Ver no texto]
39
O romancista escocês Walter Scott (1771-1832) foi o criador do verdadeiro romance histórico. Aos vinte e dois anos, Walter Scott era já considerado o primeiro poeta nacional, famoso pela “Canção do Último Menestrel”. Seu romance Ivanhoé, publicado em 1820, narra a luta entre saxões e normandos e as intrigas de João sem Terra para destronar Ricardo Coração de Leão. [Ver no texto]
40
RÖHL, Ruth; HEISE, Eloá. História da literatura alemã. São Paulo: Ática, 1989 [Ver no texto]
41
CANDIDO, Antonio. O romantismo no Brasil. São Paulo: Humanitas, 2001. [Ver no texto]
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