Ir para conteúdo

Capítulo 2 A Reforma e a Contrarreforma

Nascida no contexto do Renascimento, a Reforma Protestante corresponde, no ocidente europeu, ao fim da Idade Média, na medida em que destruiu irremediavelmente o modus vivendi comunal que caracterizava a sociedade feudal, centrada em torno das figuras do Papa e do Imperador.

Mesmo para além de uma análise do mérito teológico intrínseco das várias proposições doutrinais sustentadas pelos reformadores, com particular destaque para Lutero e Calvino, esse movimento intelectual assume um relevo todo particular na história das ideias e das instituições europeias. Nele e através dele, a consciência individual manifestou o seu vigor crítico e emancipatório juntamente com todo o seu poder de destruição, reconstrução e reorientação dos sistemas e das tradições que estruturavam e suportavam, até aquele determinado momento, a realidade política, econômica, social e cultural do mundo europeu.

Antes de analisar mais detalhadamente o movimento, cabe observar que já nos fins da Idade Média a palavra reforma era usada com o significado de purificação interior do crente e de busca da regeneração da Igreja Católica. Os reformadores religiosos que com ela romperam, passaram a empregar reforma para designar o movimento geral de transformação religiosa. Não só na Igreja Católica como também – e até principalmente – fora dela. O termo atualmente abrange tanto a Reforma Protestante como a Católica, se bem que a Católica tenha sido, de certo modo, uma Contrarreforma, uma reação à Reforma Protestante. Os católicos procuram evitar o uso da expressão Contrarreforma, argumentando que o movimento reformista já existia na sua Igreja bem antes da Reforma Protestante.17

Preparando o caminho

O desenvolvimento cultural e econômico dos séculos XV e XVI facilitou a divulgação dos conhecimentos religiosos e dos anseios dos homens da época. Esses anseios é que tornaram possível a Reforma. Conscientes, depois de um longo processo de cristianização que durou boa parte da Idade Média, da doutrina e da moral de sua religião, os cristãos passaram a observar o comportamento do clero e verificaram que ele não estava de acordo com os ensinamentos de Cristo. Acharam, então, que não adiantava reformarem-se interiormente se o clero – que servia de intermediário entre eles e Deus – não mudasse também. O que desejavam era mudar a estrutura da Igreja, não a sua doutrina. Não havia propriamente uma crise de fé – a construção de igrejas, as numerosas peregrinações, a fundação de irmandades leigas e o aparecimento das heresias o provam.18

Contudo, já havia uma crise na organização eclesiástica, independentemente dos abusos. O problema vinha das origens da Igreja e principalmente da Idade Média, quando os chefes da Igreja eram também homens do mundo, isto é, grandes senhores sem preocupações religiosas. Eis por que os papas do início do século XVI protegiam os artistas, formavam alianças políticas com príncipes e imperadores, guerreavam, viviam em cortes luxuosas (cujas despesas eram cobertas pelas contribuições dos fiéis) e procuravam aumentar suas rendas pela acumulação de cargos religiosos. As eleições do papa chegaram a provocar verdadeiros conflitos políticos entre as grandes famílias italianas. Com tudo isso, a autoridade papal ficou desmoralizada. Para superar tal situação, o Concílio tomou a si a supremacia nas decisões dentro da Igreja.

A Europa da Idade Média era uma sociedade relativamente estável e fechada. Mas durante o Renascimento ganhou corpo um grande processo de abertura e expansão comercial e marítima. O homem vai tornando-se, aos poucos, o centro das preocupações, o que possibilita paulatinamente a instalação de uma mentalidade mais laica.

Por outro lado, as diversas crises pelas quais a Europa passou desde a Baixa Idade Média ajudaram a fragilizar o poder clerical. Guerras, fomes, destruição e dificuldades diversas, contudo, não foram suficientes para que a Igreja reorganizasse sua postura. Há tempos, padres, bispos e papas estavam afastados de ideais tipicamente cristãos como a solidariedade, a simplicidade e a honestidade. Em lugar disso, o fausto parecia ser a marca da Igreja Católica .Além disso, entre a população de maneira geral o medo da morte e da danação eterna, assim como a preocupação com a salvação pessoal tornam-se avassaladoras.

O triunfo da morte (1562) de Pieter Bruegel.
Figura 11.O triunfo da morte (1562) de Pieter Bruegel.

No século XIV, o inglês John Wycliffe, considerado como precursor da Reforma Protestante, já havia levantado diversas questões, defendendo o retorno da Igreja à primitiva pobreza e se insurgindo contra os padres em seus vícios, e contra o sistema eclesiástico. No início do século XV, João Huss pregava o sacerdócio universal dos crentes, segundo o qual qualquer pessoa poderia comunicar-se com Deus sem a mediação sacramental e eclesial. Em suas palavras:

Os padres que vivem no vício, seja ele de que espécie for, maculam o poder sacerdotal, e como filhos infiéis pensam falsamente a respeito dos sacramentos da Igreja, das chaves, das funções, das censuras, dos costumes, das cerimônias, das coisas santas da Igreja, do culto das relíquias, das indulgências, das ordens. Ninguém é representante de Cristo ou de Pedro, se não imitar igualmente seus costumes.19

Ele foi excomungado em 1410. Apesar disso, o cenário de descrédito resultou na dúvida e, para muitos, os leigos passaram a ser vistos como melhores que os homens da Igreja. O historiador Jean Delumeau, tratando sobre o contexto, afirma que:

Se tantas pessoas, de níveis culturais e econômicos diferentes, optaram pela Reforma, foi por esta ter sido em primeiro lugar uma resposta religiosa a uma grande angústia coletiva. A guerra dos Cem Anos, a Peste Negra, numerosas crises [...]. A indivíduos e sociedades pesaram as consciências e se sentiram culpados. Só o pecado podia explicar tantas desgraças.20

Os homens, em busca de defesas contra a morte terrena e espiritual, às vésperas da Reforma intensificam o culto pela Paixão de Cristo e pela Virgem das Dores. Cresceu também a devoção a Maria e sua mãe, Santa Ana, a devoção do rosário, a recitação do Ângelus, o culto dos santos e as disputas por relíquias (as de Jesus e Maria davam direito a indulgências). A piedade do século XV se afastou paulatinamente da liturgia tradicional, preferindo as procissões à missa, o rosário à comunhão, as manifestações dos flagelantes à assembleia paroquial.

Cristo carregando a cruz, Hieronymus Bosch, s/d.
Figura 12.Cristo carregando a cruz, Hieronymus Bosch, s/d.

Em uma época em que o individualismo, sob todas suas formas, estava em processo de desenvolvimento, era normal que o pecador se sentisse por vezes só perante Deus. Mesmo porque tal individualismo é, evidentemente, solidário de certa afirmação do espírito laico. Na verdade, ao individualismo laico somava-se outro individualismo –o da piedade pessoal, quase mística, muitas vezes. Num mundo em crise, os canais hierárquicos e litúrgicos que, ordinariamente, conduziam para Deus pareciam insuficientes.

Num momento em que as multidões mais careciam da disciplina e dos sacramentos da Igreja, os bispos não visitavam as dioceses, vigários pouco instruídos não orientavam. O povo cristão andava à deriva. Foi a esse cenário que a Reforma protestante e a católica tentaram responder

O Juízo Final, afresco de Michelangelo Buonarroti, 1535-1541.
Figura 13.O Juízo Final, afresco de Michelangelo Buonarroti, 1535-1541.

Os reformadores

O colapso da irmandade universal – católica era iminente e daria origem a uma “nova” fé, à qual se atribuiria o valor de reformada. À frente dessa Reforma estava um monge agostiniano, Martinho Lutero, profundamente angustiado e afligido pela consciência de seus pecados, para os quais não via a possibilidade de perdão. A tensão espiritual interior de Lutero era, na verdade, um sentimento evidente em muitas pessoas. A prática comum, todavia, estabelecida por parcelas da Igreja para lidar com a questão do pecado e do perdão era a venda das indulgências. A partir da publicação de suas 95 teses (1517), Lutero se indispõe publicamente contra os desmandos da Igreja, aponta a necessidade de mudanças e condena veementemente a venda de indulgências.21

Martinho Lutero, 1528, retrato de Lucas Cranach.
Figura 14.Martinho Lutero, 1528, retrato de Lucas Cranach.

Nesse contexto é que emergiu o Protestantismo dando ênfase a três doutrinas principais: a justificação pela fé, o sacerdócio universal, a infalibilidade apenas das Sagradas Escrituras: a Bíblia. As repercussões dessas pregações seriam tão contundentes, que dividiriam a Europa entre Protestantes e Católicos.

A partir de então, discute-se a participação do indivíduo na construção de sua própria identidade e realidade espiritual, o que inevitavelmente repercute nas questões políticas daquele tempo. Colocado ao alcance de cada homem e mulher, o guia da fé cristã – a Bíblia – vai dar a cada um deles a oportunidade de investigar e questionar o papel dos sacerdotes e autoridades no contexto da vida cotidiana.

Certo é que a Reforma Protestante possui várias causas inter- -relacionadas, e nenhuma delas por si só pode dar uma explicação completa sobre o movimento. Desde camponeses pobres, comerciantes ávidos pelo lucro, condenado pela Igreja Católica, intelectuais ávidos por uma nova teologia, mais próxima dos ideais humanistas, até nobres e príncipes ansiosos por verem-se livres dos tributos de Roma, todos poderiam ver na Reforma Protestante um motivo para aceitação, ante suas próprias necessidades. Assim, não tardou para que as ideias de Lutero alcançassem muitos cristãos igualmente contritos e aflitos.

A partir de então, a reforma luterana difundiu-se rapidamente no Sacro Império, sendo abraçada por vários principados alemães. Isso levou a dificuldades crescentes com os principados católicos, com o novo imperador Carlos V (1519-1556) e com o parlamento (Dieta). Na Dieta de 1526, houve uma atitude de tolerância para com os luteranos, mas em 1529 a Dieta de Spira reverteu essa política conciliadora. Diante disso, os líderes luteranos fizeram um protesto formal que deu origem ao nome histórico “protestantes”. No ano seguinte, o auxiliar e eventual sucessor de Lutero, Filipe Melanchton (1497-1560), apresentou ao imperador Carlos V a Confissão de Augsburgo, um importante documento que definia em 21 artigos a doutrina luterana e indicava sete erros que Lutero via na Igreja Católica Romana.22

Os problemas político-religiosos levaram a um período de guerras entre católicos e protestantes (1546-1555), que terminaram com um tratado, a Paz de Augsburgo. Esse tratado assegurou a legalidade do luteranismo mediante o princípio Cujus regio, eius religio, ou seja, a religião de um príncipe seria automaticamente a religião oficial do seu território. O luteranismo também se difundiu em outras partes da Europa, principalmente nos países nórdicos, surgindo igrejas nacionais luteranas na Suécia (1527), Dinamarca (1537), Noruega (1539) e Islândia (1554). Lutero e os demais reformadores defenderam alguns princípios básicos que viriam a caracterizar as convicções e práticas protestantes: Sola fide (somente a fé); Sola scriptura (somente a Escritura); Solus Christus (somente Cristo); Sola gratia (somente a graça); Soli Deo gloria (glória somente a Deus). Outro princípio aceito por todos foi o do sacerdócio universal dos fiéis.

Os Cinco Solas da Reforma.
Figura 15.Os Cinco Solas da Reforma.

Reformador contemporâneo de Lutero, Ulrico Zuínglio, conhecido por sua educação esmerada com forte influência humanista, foi, inicialmente, sacerdote em Glarus (1506) e em Einsiedeln (1516). Influenciado pelo Novo Testamento publicado por Erasmo de Roterdã, tornou-se um estudioso das Escrituras e um pregador bíblico. Com isso, foi chamado para trabalhar na catedral de Zurique em 1518. Quatro anos mais tarde, surgiram as primeiras divergências com a doutrina católica. Zuínglio defendeu o consumo de carne na quaresma e o casamento dos sacerdotes, alegando não serem essas coisas proibidas nas Escrituras. E propôs o princípio de que tudo devia ser julgado pela Bíblia.23

Vale destacar que Lutero considerou Zuínglio um adversário. Contudo, este foi o principal líder da Reforma Protestante na Suíça, tendo chegado a conclusões semelhantes às de Lutero, mas pelo estudo das escrituras do ponto de vista de um erudito humanista. Não deixou uma igreja organizada, mas as suas doutrinas influenciaram as confissões calvinistas.24

Ulrich Zwingli, retrato de 1531.
Figura 16.Ulrich Zwingli, retrato de 1531.

Em 1523, houve o primeiro debate público em Zurique e a cidade começou a tornar-se protestante. O reformador escreveu os Sessenta e sete artigos – a carta magna da reforma de Zurique –, nos quais defendeu a salvação somente pela graça, a autoridade da Escritura e o sacerdócio dos fiéis, bem como atacou o primado do papa e a missa. Esse movimento suíço, conhecido como a “segunda reforma”, deu origem às igrejas “reformadas”, difundindo-se inicialmente na Suíça alemã e no sul da Alemanha. Em 1525, o Conselho Municipal de Zurique adotou o culto em lugar da missa e em geral promoveu mudanças mais radicais do que as efetuadas por Lutero.

O terceiro movimento da Reforma Protestante surgiu também na própria cidade de Zurique. Em 1522, homens como Conrado Grebel e Félix Mantz começaram a reunir-se com amigos para estudar a Bíblia. Inicialmente, eles apoiaram a obra de Zuínglio, mas a partir de 1524 passaram a condenar tanto Zuínglio quanto as autoridades municipais, alegando que a sua obra de reforma não estava sendo profunda o suficiente. Por causa de sua insistência no batismo de adultos, foram apelidados de “anabatistas”, ou seja, rebatizadores, sendo também chamados de radicais, fanáticos, entusiastas e outras designações. Por causa de suas atividades de protesto, nas quais chegavam a interromper cultos e celebrações da ceia, os líderes anabatistas sofreram punições de severidade crescente. Em 1526, Grebel morreu em uma epidemia, mas seu pai foi decapitado, Mantz foi afogado e outro líder, Jorge Blaurock, foi expulso da cidade.25

O movimento logo se difundiu nas vizinhas Alemanha e Áustria e em outras partes da Europa. Um importante líder em Estrasburgo foi Miguel Sattler (c.1490-1527), que presidiu a conferência de Schleitheim (1527), na qual os anabatistas aprovaram a Confissão de Fé de Schleitheim. Essa confissão definiu os princípios anabatistas básicos: ideal de restauração da igreja primitiva; igrejas vistas como congregações voluntárias separadas do Estado; batismo de adultos por imersão; afastamento do mundo; fraternidade e igualdade; pacifismo; proibição de porte de armas, cargos públicos e juramentos. Os anabatistas foram os únicos protestantes do século XVI a defenderem a completa separação entre a igreja e o estado.

Os anabatistas adquiriram uma reputação negativa por causa de acontecimentos ocorridos na cidade de Münster (1532-1535). Influenciados por Melchior Hoffman, que anunciou o fim do mundo e a destruição dos ímpios, alguns anabatistas implantaram uma teocracia intolerante naquela cidade alemã. Finalmente, foram todos mortos por um exército católico. Já na Holanda, o movimento teve um líder equilibrado e capaz na pessoa de Menno Simons (1496-1561), do qual vieram os menonitas. Outro líder de expressão foi Jacob Hutter (†1536), na Morávia. Os menonitas e os huteritas viviam em colônias, tendo muito em comum. Cruelmente perseguidos em toda a Europa, muitos deles eventualmente emigraram para a América do Norte. Também Zuínglio acabou por envolver-se numa guerra civil na Suíça e foi morto. Depois dele, Genebra se tornaria baluarte da reforma sob o comando de Calvino.

Segundo Delumeau, “na altura em que o Luteranismo sufocava, por meados do séc. XVI, Calvino trouxe um novo alento de vida e de força à Reforma”26. João Calvino (1509-1564) nasceu em Noyon, no nordeste da França. Seu pai, Gérard Cauvin, era secretário do bispo e advogado da igreja naquela cidade; sua mãe Jeanne Lefranc, morreu quando ele ainda era uma criança. Após os primeiros estudos em sua cidade, Calvino seguiu para Paris, onde estudou teologia e humanidades (1523-1528). A seguir, por determinação do pai, foi estudar direito nas cidades de Orléans e Bourges (1528- 1531). Com a morte do pai, retornou a Paris e deu prosseguimento aos estudos humanísticos, publicando sua primeira obra, um comentário do tratado de Sêneca Sobre a Clemência.

Retrato de Calvino jovem.
Figura 17.Retrato de Calvino jovem.

Quando ocorreu de fato sua “conversão” é impossível precisar com segurança. Mas, a partir de 1533, começa a fazer-se notar como protestante. Em novembro daquele ano, seu amigo Nicholas Cop fez um discurso de posse na Universidade de Paris repleto de ideias protestantes. Calvino foi considerado o coautor do discurso e os dois amigos tiveram de fugir para salvar a vida. Calvino foi para a cidade de Angouleme, onde começou a escrever a sua obra mais importante, a Instituição da Religião Cristã, ou Institutas, publicada em Basiléia em 1536 (a última edição seria publicada somente em 1559). Após voltar por breve tempo à França, decidiu fixar-se na cidade protestante de Estrasburgo, onde atuava o reformador Martin Butzer (1491-1551). No caminho, ocorreu um episódio marcante. Impossibilitado de seguir diretamente para Estrasburgo por causa de guerra entre a França e a Alemanha, o futuro reformador fez um longo desvio, passando por Genebra, na Suíça francesa. Essa cidade havia abraçado o protestantismo reformado há apenas dois meses (maio de 1536), sob a liderança de Guilherme Farel (1489-1565). Este, sabendo que o autor das Institutas estava de passagem pela cidade, o “convenceu” a permanecer ali e ajudá-lo.27

Logo, Calvino e Farel entraram em conflito com os magistrados de Genebra e dois anos depois foram expulsos. Calvino seguiu então para Estrasburgo, onde passou os três anos mais felizes e produtivos da sua carreira (1538-1541). Naquela cidade, ele pastoreou uma igreja de refugiados franceses, casou-se com a viúva Idelette de Bure (†1549), lecionou na academia de João Sturm, participou de conferências religiosas ao lado de Martin Butzer e publicou algumas obras importantes, entre elas a segunda edição das Institutas e o Comentário de Romanos, o primeiro dos muitos comentários que escreveu.

Contudo, a convite dos magistrados de Genebra, Calvino aceitou retornar à cidade com a condição de que pudesse escrever a constituição da Igreja Reformada de Genebra. Essa importante obra, as Ordenanças Eclesiásticas, previa quatro categorias de oficiais: pastores, encarregados da pregação e dos sacramentos; doutores para o estudo e ensino da Bíblia; presbíteros, com funções disciplinares; e diáconos, encarregados da beneficência. Os pastores e os doutores formavam a Companhia dos Pastores; os pastores e os presbíteros integravam o Consistório, uma espécie de tribunal eclesiástico. Calvino teve um relacionamento tenso com as autoridades municipais até 1555. Em 1559, um ano especialmente significativo, o reformador tornou-se cidadão de Genebra, fundou a sua Academia, embrião da Universidade de Genebra, e publicou a última edição das Institutas.

Genebra tornou-se um grande centro do protestantismo, preparando líderes reformados para toda a Europa e abrigando centenas de refugiados. O calvinismo veio a ser o mais completo sistema teológico protestante, tendo por princípio básico a soberania de Deus e suas implicações, assim como a doutrina relativa à obra de salvação realizada por Jesus Cristo em favor da humanidade. Foi essa a origem das Igrejas reformadas (continente europeu) ou presbiterianas (Ilhas Britânicas). Os principais países em que se difundiu o movimento reformado foram, além da Suíça e da França, o sul da Alemanha, a Holanda, a Hungria e a Escócia.28

Os progressos da Reforma

• O caso inglês

Múltiplos fatores contribuíram para a introdução da Reforma Protestante na Inglaterra: o anticlericalismo de uma grande parcela do povo e dos governantes, as ideias do pré-reformador João Wycliff, a penetração de ensinos luteranos a partir de 1520, o Novo Testamento traduzido por William Tyndale (1525) e a atuação de refugiados que voltaram de Genebra. Além disso, o novo alento que Calvino deu ao Protestantismo permitiu à Reforma se implantar solidamente na Grã-Bretanha e nas colônias inglesas. Todavia, a igreja oficial foi mais calvinista por sua teologia que por sua liturgia e organização29, e quem deu o passo decisivo para que a Inglaterra começasse a tornar-se oficialmente protestante foi o rei Henrique VIII.

Retrato do Rei Henrique VIII.
Figura 18.Retrato do Rei Henrique VIII.

Henrique VIII (1491-1547) começou a reinar em 1509. Sendo muito católico, em 1521 escreveu um folheto contra Lutero que lhe valeu o título de “defensor da fé”. Era casado com a princesa espanhola Catarina de Aragão, que era viúva do seu irmão e que não tinha lhe dado um filho varão, mas somente uma filha, Maria. Henrique VIII pediu ao papa Clemente VII que anulasse o seu casamento com Catarina para que pudesse casar-se com Ana Bolena, mas o papa não pode atendê-lo nesse desejo. Uma das principais razões foi o fato de que Catarina era tia do sacro imperador germânico Carlos V. Em 1533, Thomas Cranmer (1489-1556) foi nomeado arcebispo de Cantuária e poucos meses depois declarou nulo o casamento do rei.30

Com a excomunhão de Henrique VIII, por conta do casamento com Ana Bolena em 1533, o parlamento votou três atos em 1534:

  1. Ato de supremacia – o rei como chefe supremo na terra da igreja de Inglaterra, assumindo o direito de reprimir heresias e excomungar;

  2. Juramento apenas ao Rei;
  3. Traição só em afirmar que o Rei era cismático.

O Sínodo inglês de 1536 resultou na Confissão de Fé, contudo mantiveram-se as cerimônias católicas, as imagens, as invocações aos santos, as preces pelos mortos, a transubstanciação. Proclamou-se, por outro lado, a justificação apenas pela fé e a posse de uma bíblia em língua inglesa.31

Desse modo a Igreja Católica inglesa desvinculou-se de Roma e o rei foi declarado “Protetor e Único Chefe Supremo da Igreja da Inglaterra”. O bispo John Fisher e o ex-chanceler Thomas More opuseram-se a essas medidas e foram executados (1535); os numerosos mosteiros do país foram extintos e suas propriedades confiscadas (1536-1539). Nos anos seguintes, Henrique ainda teria outras quatro esposas: Jane Seymour, Ana de Cleves, Catarina Howard e Catarina Parr.

Henrique foi sucedido no trono por Eduardo VI (1547-1553), o filho que teve com Jane Seymour. Os tutores do jovem rei implantaram a Reforma na Inglaterra e puseram fim às perseguições contra os protestantes. Foram aprovados dois importantes documentos escritos pelo arcebispo Cranmer, o Livro de Oração Comum (1549; revisto em 1552) e os Quarenta e Dois Artigos (1553), uma síntese das teologias luterana e calvinista. Eduardo era adoentado e morreu ainda jovem, sendo sucedido por sua irmã Maria Tudor (1553- 1558), conhecida como “a sanguinária”, filha de Catarina de Aragão. Maria perseguiu os líderes protestantes e muitos foram levados à fogueira. Muitos outros, os chamados “exilados marianos”, foram para Genebra, Estrasburgo e outras cidades protestantes.

Com a morte de Maria, subiu ao trono sua meia-irmã Elizabeth I (1558-1603), filha de Ana Bolena, em cujo reinado a Inglaterra tornou- -se definitivamente protestante. Nem teóloga, nem muito religiosa, Elizabeth instituiu uma política de dependência da Igreja em relação ao Estado. Fundou de fato a Igreja Anglicana, considerada uma solução intermediária entre o Catolicismo e o Calvinismo.

Elizabeth I em sua coroação, 1559.
Figura 19.Elizabeth I em sua coroação, 1559.

Em 1563, foi promulgado o Ato de Uniformidade, que aprovou os Trinta e Nove Artigos. O resultado foi o Acordo Anglicano, que reuniu elementos das principais teologias evangélicas, bem como traços católicos, especialmente na área da liturgia. Além dos anglicanos, havia outros grupos protestantes na Inglaterra, como os puritanos, presbiterianos e congregacionais. Os puritanos surgiram no reinado de Elizabeth e foram assim chamados porque reivindicavam uma Igreja pura em sua doutrina, culto e forma de governo. Reprimidos na Inglaterra, muitos puritanos foram para a América do Norte, estabelecendo-se em Plymouth (1620) e Boston (1630), na Nova Inglaterra.

Todavia, cabe considerar que Henrique VIII e Elizabeth I não podem ser comparados aos grandes reformadores do séc. XVI

• A Reforma na Escócia

O presbiterianismo foi introduzido graças aos esforços do reformador John Knox (†1572), um discípulo de Calvino que, após passar alguns anos em Genebra, retornou à Escócia em 1559. No ano seguinte, o parlamento escocês criou a Igreja da Escócia (ou Kirk). Knox fez oposição tenaz à rainha católica Maria Stuart (1542-1587), prima de Elizabeth, que viveu na França (1548-1561) e voltou à Escócia para tomar posse do trono. A aceitação do protestantismo ocorreu no contexto da luta pela independência do domínio francês. Alguns anos mais tarde, Maria Stuart teve de fugir e buscar refúgio na Inglaterra, onde foi executada por ordem de Elizabeth em 1587.32

Foi na Escócia que surgiu o conceito político-religioso de “presbiterianismo” que se refere às igrejas cristãs protestantes que aderiram à tradição teológica reformada (calvinismo) e cuja forma de organização eclesiástica se caracteriza pelo governo de uma assembleia de presbíteros, ou anciãos. O nome dessas denominações deriva da palavra grega presbyteros, que significa literalmente “ancião”. O governo presbiteriano será comum nas igrejas da Suíça, Escócia, Países Baixos, França e porções da Prússia, da Irlanda e, mais tarde, nos Estados Unidos.33

Os reis ingleses e escoceses sempre foram firmes defensores do episcopalismo, ou seja, de uma Igreja governada por bispos. A razão disso é que, sendo os bispos nomeados pelos reis, a Igreja seria mais facilmente controlada pelo estado e serviria aos interesses do mesmo. À luz das Escrituras, os presbiterianos insistiram em uma Igreja governada por oficiais eleitos pela comunidade, os presbíteros, tornando assim a Igreja livre da tutela do Estado. Foi somente após um longo e tumultuado processo que o presbiterianismo se implantou definitivamente na Escócia.

• A Reforma na França

O movimento reformado francês surgiu na década de 1530. Inicialmente tolerante, o rei Francisco I (1515-1547) eventualmente mostrou-se hostil contra os reformados. Henrique II (1547-1559) foi ainda mais severo que o seu pai. Em 1559, reuniu-se o primeiro sínodo nacional da Igreja Reformada da França, que aprovou a Confissão Galicana. Em 1561, havia cerca de duas mil congregações reformadas no país, compostas de artesãos, comerciantes e até mesmo de algumas famílias nobres, como os Bourbon e os Montmorency. Os reformados franceses, conhecidos como huguenotes, estavam concentrados principalmente no oeste e sudoeste do país, e recebiam apoio de Genebra. Ao norte e leste estava a facção ultracatólica liderada pela poderosa família Guise-Lorraine, que gozava de grande influência sobre o rei Francisco II (1559-1560).34

Quando Carlos IX (1560-1574) tornou-se rei, sendo ainda menor, sua mãe Catarina de Médici assumiu a regência, mostrando-se inicialmente tolerante para com os huguenotes. Tentando conciliar as duas facções, ela promoveu um encontro de católicos e protestantes, o Colóquio de Poissy, em 1561. Com o fracasso desse encontro, houve um longo período de guerras religiosas (1562-1598), cujo episódio mais chocante foi o massacre do Dia de São Bartolomeu (1572). Centenas de huguenotes achavam-se em Paris para o casamento da filha de Catarina com o nobre protestante Henrique de Navarra. Na calada da noite, os huguenotes foram assassinados à traição enquanto dormiam, entre eles o seu principal líder, o almirante Gaspard de Coligny. Nos dias seguintes, muitos milhares foram mortos no interior da França. Mais tarde, quando o nobre huguenote se tornou rei, com o título de Henrique IV, ele promulgou em favor dos seus correligionários o Edito de Nantes (1598), concedendo-lhes uma tolerância limitada. Esse edito seria revogado pelo rei Luís XIV em 1685, dando início a um novo período de perseguições para os reformados franceses.

O Massacrede São Bartolomeu em Paris, de François Dubois, 1529.
Figura 20.O Massacrede São Bartolomeu em Paris, de François Dubois, 1529.

• A Reforma nos Países Baixos

Os Países Baixos eram parte do Sacro Império Germânico e depois ficaram sob o domínio da Espanha. Durante o reinado do imperador Carlos V, surgiram naquela região luteranos, anabatistas e principalmente calvinistas, por volta de 1540. Desde o início foram objeto de intensas perseguições, tendo a repressão aumentado sob o rei Filipe II (1555) e o governador Duque de Alba (1567). A revolta contra a tirania espanhola foi liderada pelo alemão Guilherme de Orange, grande defensor da plena liberdade religiosa, que foi assassinado em 1584. Por fim, os Países Baixos dividiram- -se em três nações: Bélgica e Luxemburgo (católicas) e Holanda (protestante). A Igreja Reformada Holandesa foi organizada na década de 1570.35

A Contrarreforma – aspectos gerais

Ao analisarem as ações da Igreja Católica Romana após o surgimento do protestantismo, os historiadores falam em dois aspectos: Contrarreforma e Reforma Católica. O primeiro foi o esforço da Igreja Romana para reorganizar-se e lutar contra o protestantismo. Essa reação ocorreu tanto no plano dogmático quanto no político-militar. Já a Reforma Católica revelou a preocupação de corrigir certos problemas internos do catolicismo em resposta às críticas dos protestantes e de outros grupos.36

Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus.
Figura 21.Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus.

Foram vários os elementos dessa reação. Na Espanha, houve notáveis manifestações de uma rica espiritualidade mística, cujos representantes mais destacados foram Teresa de Ávila e João da Cruz. Além do misticismo espanhol, outro sinal da revitalização católica foi o surgimento de várias ordens religiosas, das quais a mais importante foi a Sociedade de Jesus, fundada pelo espanhol Inácio de Loyola (1491-1556) e oficializada pelo papa em 1540. Além dos votos usuais de pobreza, castidade e obediência aos superiores, os jesuítas faziam um voto adicional de submissão incondicional ao papa. Seu objetivo era a expansão e o fortalecimento da fé católica através de missões, educação e combate à heresia. Os jesuítas exerceram forte influência sobre governantes e contribuíram decisivamente para a supressão do protestantismo em várias regiões da Europa, como a Espanha e a Polônia.

Contudo, o instrumento mais eficaz tanto da Contrarreforma quanto da Reforma Católica foi o Concílio de Trento, que se reuniu em três séries de sessões entre 1545 e 1563. Seus decretos rejeitaram explicitamente as doutrinas protestantes e oficializaram o tomismo (a teologia de Tomás de Aquino), a Vulgata Latina e os livros denominados apócrifos. Outros instrumentos da Contrarreforma foram o Índice de Livros Proibidos (Index Librorum Prohibitorum, 1559) e a Inquisição, especialmente em suas versões espanhola e romana. Como expressão do dinamismo católico nesse período, as ordens dos franciscanos, dominicanos e jesuítas realizaram uma grande obra missionária no Oriente e nas Américas.

Concilio de Trento, 1563, gravura de Angelo Massarelli.
Figura 22.Concilio de Trento, 1563, gravura de Angelo Massarelli.
Figura 23.Capa do Index Librorum Prohibitorum, 1559.

No território do Sacro Império, os conflitos entre católicos e protestantes continuaram por muitas décadas, atingindo o seu auge na tenebrosa Guerra dos Trinta Anos, que envolveu metade do continente europeu. Essa guerra terminou com a Paz de Westfália (1648), que fixou definitivamente as fronteiras político-religiosas da Europa e marcou o final do período da Reforma.

Cabe considerar, conforme destaca Jean Delumeau, que o clima de hostilidade se inscreve num contexto geral de intolerância, época em que amar e praticar sua religião significa muitas vezes combater a de outrem. As guerras civis alemãs, as da França e a revolta dos Países Baixos no séc. XVI foram guerras de religião. E, de fato, no Ocidente, o ódio ao herético se tornou lei. Mas a intolerância esteve dos dois lados. Um pouco por toda parte, na Europa do século XVI, estouraram fúrias iconoclastas e é impossível dizer qual dos dois adversários foi mais cruel e em que país se levaram mais longe os requintes de barbárie. A intolerância religiosa teve longa duração.37

Todavia, não se pode negar que a renascença católica, a partir do meio do século XVI, foi uma das grandes surpresas do período. Tanto quanto a resistência do Protestantismo à Contrarreforma e às dissensões internas. De maneira geral, o catolicismo se manteve na Península Ibérica, Itália e Baviera, ainda na Polônia, Renânia, Áustria, Boêmia, França e nas missões nas Filipinas, América espanhola e portuguesa e Canadá. Ao passo que Protestantismo se fortaleceu na Alemanha, Suíça, Escandinávia, Províncias Unidas, Inglaterra, Escócia e América do Norte.

Mapa da Reforma na Europa.
Figura 24.Mapa da Reforma na Europa.
Guerras de Religião, Europa, séc. XVII.
Figura 25. Guerras de Religião, Europa, séc. XVII.



17 Cf. DELUMEAU, J. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989.

18 Cf. CAIRNS, Earle E. O cristianismo através dos séculos: uma história da igreja cristã. Tradução de Israel Belo de Azevedo. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1995. DELUMEAU, J. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989.

19 Cf. AGUIAR, Thiago Borges de. Jan Hus: as cartas de um educador e seu legado imortal. 2010. 305 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

20 DELUMEAU, 1989, p. 60.

21 CAVALCANTE, Berenice (Org.). Modernas tradições. Percursos da cultura ocidental séculos XV-XVII. Rio de Janeiro: Access, 2002. p. 85-92.

22 RANDELL, Keith. Lutero e a reforma alemã. São Paulo: Ática, 1995. p. 24-28.

23 Cf. GEORGE, T. Teologia dos reformadores. São Paulo: Vida Nova, 1993.

24 DELUMEAU, J. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989. p. 92.

25 Cf. CAIRNS, Earle E. O cristianismo através dos séculos: uma história da igreja cristã. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1995.

26 DELUMEAU, J. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989. p. 115.

27 Cf. MENDONÇA, Antonio Gouvêa. O pensamento de João Calvino. São Paulo: Mackenzie, 2000.

28 Cf. WALLACE, Ronald S. Calvino, Genebra e a Reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 1998.

29 DELUMEAU, 1989, p. 137.

30 Cf. LINDBERG, Carter. As Reformas na Europa. São Leopoldo: Sinodal, 2001.

31 DELUMEAU, 1989, p. 141.

32 ABREU, M. Z. G. A Reforma da Igreja em Inglaterra. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.

33 Cf. DELUMEAU, 1989.

34 Cf. LINDBERG, Carter. As Reformas na Europa. São Leopoldo: Sinodal, 2001.

35 Cf. LINDBERG, Carter. As Reformas na Europa. São Leopoldo: Sinodal, 2001.

36 Cf. DELUMEAU, J. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989.

37 DELUMEAU, 1989, p. 236-237.

Voltar ao topo

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Ao continuar navegando você concorda com o uso dos cookies, termos e políticas do site.