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Capítulo 5 Iluminismo

Origens

A palavra que deu o nome ao período, Iluminismo, teve origem na dicotomia luz-trevas e foi recorrente em todos os idiomas europeus. Assim, temos Enlightenment para os de fala inglesa, Siècle des Lumières na França, Illuminismo na Itália, Aufklarung para alemães e austríacos91. Ao mesmo tempo, se a palavra era semelhante nas principais línguas europeias, não se pode falar de um único Iluminismo. Como afirma Johnson Kent Wright, “o Iluminismo nunca se apresentou como um único sistema teórico ou doutrina ideológica única”92. Assim, Jonathan Israel93 afirma que houve um Iluminismo radical, que teve sua matriz nas ideias de Baruch Spinoza, e um Iluminismo moderado, baseado em John Locke. Mas também podemos fazer menção à cisão que ocorreu quando da publicação da Carta a d’Alembert sobre os espetáculos de Jean-Jacques Rousseau em 1758. Nesse momento a “frente das Luzes” se cinde94. A partir daí podemos falar de um Iluminismo voltairiano e de um Iluminismo rousseauísta. Ou, ainda, mencionarmos o Iluminismo de pendores republicanos e o iluminismo que defendeu o despotismo esclarecido.

Figura 47. Baruch Spinoza.
Figura 48. John Locke.

Tendo tido seu momento de maior brilho no século XVIII francês, a Ilustração teve origem no século anterior e fora do solo francês. Em que momento precisamente é matéria de debate? Paul Hazard, em seu livro A crise da consciência europeia, pensava que se deveriam buscar as primeiras manifestações da Ilustração não no século XVIII, mas sim por volta de 1680. Nesse período teria ocorrido um turbilhão de ideias novas, as quais, sinteticamente, passaram da ideia do dever para a ideia do direito95. Já Paul Vernière contestava essa ideia, alegando que “certas mudanças e desenvolvimentos se iniciam muito antes de 1680”96. A posição de Furio Diaz é de que se deveria considerar o primeiro terço do século XVII como o momento para a ocorrência dessas mudanças e desenvolvimentos, naquele processo que George Gusdorf chamou de revolução galileana. Contudo, Diaz afirmava que a intuição de Hazard de uma aceleração de movimento, de uma delineação de certas rupturas possui um valor indubitável97.

Assim, a crise da consciência europeia ocorreu numa época em que os europeus ainda viviam sob uma cosmovisão circunscrita, um mundo culturalmente dependente das sagradas escrituras e dos clássicos, que estabeleciam que a Terra estava no centro e a criação do mundo remontava ao ano 4004 a.C.98 Este era também um mundo em que o papel do sobrenatural tinha uma enorme importância. O movimento das Luzes se fez, portanto, na tentativa de superação dessas limitações e nesse sentido foi uma continuação do programa aberto pela Renascença, devido à importância cada vez maior dada à razão. Mas também foi a superação desse programa, já que “a convicção da absoluta superioridade do antigo sobre a moderna civilização [noção central do Renascimento] foi quebrada uma vez por todas no Ocidente”99 com o movimento das Luzes. Dessa forma, aquela aceleração de que fala Diaz foi o paroxismo do processo de contestação da tradição, do sagrado e da autoridade. Nada, então, deveria escapar ao escrutínio da razão. Foi o que Emmanuel Kant (1724-1804) sintetizou, já no fim do período Ilustração, com as famosas palavras Sapere aude, ousar saber.

Três precursores

Se a França teve um papel central no Iluminismo durante o século XVIII, é inegável o papel que tiveram a Inglaterra e os Países Baixos no pioneirismo da formulação dos temas e questões que caracterizariam a Ilustração. Vivendo num quadro de liberdade que a maior parte das nações europeias não vivia, esses países forneceram as condições propícias para que aquela crise de que falava Hazard tivesse início. Segundo ele:

Então uma crise se operou na consciência europeia entre a Renascença, da qual ela procede diretamente, e a Revolução Francesa, que ela prepara [...]. Uma civilização fundada sobre a ideia de dever, os deveres para com Deus, os deveres para com o príncipe, os “novos filósofos” tentaram substituir por uma civilização fundada sobre a ideia do direito: os direitos da consciência individual, os direitos da crítica, os direitos da razão, os direitos do homem e do cidadão.100

Se foi com Baruch Spinoza (1632-1677), no terceiro quartel do século XVII, que essa crise começou, como pensa Israel101, ou se o protagonismo coube a John Locke (1632-1704) e Pierre Bayle (1647- 1706), pouco mais tarde, como pensa Diaz102, a preponderância desses países não muda.

Assim, Spinoza, judeu natural dos Países Baixos e de ascendência portuguesa, foi quem deu início a uma crítica contundente das ideias herdadas. A sua trajetória de enfrentamento radical dessas ideias já pode ser vista num episódio marcante de sua juventude, seu banimento da comunidade judaica de que fazia parte em Amsterdam, quando tinha vinte e três anos, muito provavelmente por causa de suas ideias sobre Deus. Sua primeira obra a chamar a atenção foi uma exposição crítica de René Descartes (1596-1650), Princípios de filosofia (1663). Seguiu-se a publicação anônima, em 1670, do Tratado teológico-político, um “incrivelmente audacioso trabalho de criticismo bíblico e pensamento político”103. Este tratado provocou uma reação amplamente negativa das autoridades, o que fez com Spinoza decidisse não publicar sua outra grande obra, Ética, que veio a público somente após sua morte. 

Assim, como podemos ver pelo comentário de Steven Nadler acima citado, as contribuições fundamentais de Spinoza foram sua visão crítica em relação à Bíblia e ao pensamento religioso. Como afirma Richard Popkins, o ceticismo de Spinoza sobre a religião revelada levou a uma “devastadora crítica das afirmações do conhecimento revelado, que provocou um extraordinário efeito sobre os últimos três séculos de secularização do homem moderno”104. Spinoza chegou a afirmar que “o antigo testamento é somente uma história dos judeus, nem mais nem menos autêntica que qualquer história”105.

Sua outra contribuição fundamental se situa no campo do pensamento político, no qual ele desenvolveu ideias sobre o estado e a sociedade, as quais, segundo Nadler, eram profundamente democráticas. Contrariou mais uma vez a tradição, ao insistir que “a democracia é, de todas as constituições possíveis, a mais consistente com os direitos naturais, a menos sujeita aos abusos do poder, a mais estável e a favorável à liberdade humana”106. Esse republicanismo spinozista deu origem a uma tradição de radicalismo republicano que estava em linha direta com a retórica revolucionária de Robespierre e os jacobinos.107

Outro autor fundamental para as origens da filosofia das Luzes foi John Locke. Envolvido nos conflitos políticos e religiosos da Inglaterra, Locke viveu após 1675 no exílio e somente depois de sua volta à Inglaterra em 1689, com a vitória da Revolução Gloriosa, seus escritos vieram a público. Em seu primeiro livro publicado nesse momento, O ensaio sobre o entendimento humano, contestava a concepção aristotélica da natureza inata das ideias, defendendo o papel da experiência. Podemos ver a ligação direta desse filósofo com o movimento das Luzes, pois foi por essa contestação que Locke foi elogiado por Voltaire nas Lettres Philosophiques como o titã da “nova era”, mais ainda do que Newton, que também nessa obra foi elogiado, justamente por ter arruinado as ideias inatas108.

François Marie Arouet, dito Voltaire.
Figura 49. François Marie Arouet, dito Voltaire.

Locke publicou no mesmo momento os Dois tratados sobre o governo civil. Escritos em 1681, esses textos tiveram uma divulgação em surdina até sua publicação em 1690. No Primeiro tratado, Locke faz uma refutação do Patriarca, livro de Robert Filmer. Este defendia o direito divino dos reis baseado no princípio da autoridade paterna, detida por Adão, o primeiro pai. Já no Segundo, Locke pregava que os homens tinham entrado para a sociedade para preservar seus direitos naturais, sua liberdade, e que o soberano era obrigado a respeitar o contrato estabelecido entre eles.

O estado de natureza de Locke, diferente do de Hobbes, era um estado de relativa paz, concórdia e harmonia. Para Locke, a propriedade privada já estava presente no estado de natureza. Ela era tanto a vida, a liberdade e os bens quanto os bens móveis e imóveis. Portanto, para Locke, a propriedade privada era um direito natural, tendo por fundamento o trabalho. Diferentemente do “pacto de submissão” de Hobbes, o contrato social de Locke tinha sido estabelecido por um “pacto de consentimento”. Locke afirmava que, desde que houvesse um abuso da autoridade concedida pela lei (quando o governo entra em estado de guerra contra a sociedade), o pacto era rompido e os contratantes tinham o dever de restabelecer a boa ordem. Locke pregava, portanto, a ideia do direito à insurreição.

Por fim, o último desses precursores, Pierre Bayle (1647-1706), era de origem francesa, mas acabou vivendo no exílio nos Países Baixos. Descrito “como a figura intelectual chave da virada para o século XVIII”109, que o próprio Voltaire classificaria como o primeiro dos filósofos céticos, Bayle foi o criador, em 1684, das Nouvelles de la république de lettres, primeira revista consagrada à crítica literária, assim como foi o autor dos Pensamentos sobre o cometa (1680), no qual “dissocia o sobrenatural e o religioso, demonstrando que os cometas são fenômenos naturais”110. Contudo, a obra principal de Bayle seria o seu Enciclopédico Dicionário histórico-crítico (1695-1697), a mais popular do século XVIII111. O impacto dessa obra pode ser aquilatado pelo fato de que tanto católicos quanto protestantes a atacaram. Nela, Bayle manifestava seu ceticismo, sua compreensão de que muitas ideias consideradas verdadeiras são meros frutos da opinião e sua defesa da tolerância religiosa, formulando desta forma de maneira pioneira questões centrais da Ilustração.

O Iluminismo na França

Foi a França, durante o século XVIII, que ocupou uma posição dominante no Iluminismo. As razões para isso talvez possam ser encontradas na centralidade geopolítica do estado francês naquele século. Maior país da Europa Ocidental, também o mais populoso, a França era a mais poderosa monarquia do continente. Foi nela, portanto, que o sentimento de reforma encontrou um campo propício, pois também a França era a mais acabada monarquia absolutista de sua época, encarnando tudo aquilo que se queria reformar. Ao mesmo tempo, após a morte de Luís XIV, seguiu-se um período de descompressão cultural durante a regência do duque de Orleans.

Assim, podemos seguir a sugestão de Monique Cotret112 e estudarmos o Iluminismo na França dividindo-o em um “primeiro Iluminismo”, que se confundiu com o período da menoridade de Luís XV e da regência do duque de Orleans, bem representado pela frequência ao café Procope e aos salões que se criaram então, como o salão filosófico de madame de Tencin. Foi nesse momento em que apareceram as primeiras obras dos grandes autores do Século das Luzes, como foi o caso das Cartas persas (1721) de Charles de Secondat de Montesquieu (1789-1755) – nas quais se desenvolveram temas que eram fundamentais para a filosofia das luzes, como, por exemplo, a dúvida, a crítica e a contraposição de culturas –, e os primeiros passos dados por Voltaire, a figura emblemática da Ilustração francesa, seus primeiros poemas e peças, como Henríada e Édipo.

Contudo, o Iluminismo perdeu pouco a pouco essa ligeireza do tempo da Regência113. Ele começou a ingressar em um momento de discussões mais profundas. Testemunho exemplar desse momento são as obras de Montesquieu. Em 1734, saíram as Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e sua decadência, na qual Montesquieu fez surgir “os princípios de uma ciência descritiva, laica e secular”114, pois, como ele afirmava, não era a fortuna que dominava o mundo, “mas causas gerais, morais ou físicas, que operam em cada monarquia, a elevam, a mantém em pé, ou a fazem cair”115.

Em 1748, saiu o Espírito das leis, seu clássico sobre a política, no qual Montesquieu rechaçava o jusnaturalismo, pois pretendia estudar as sociedades tais como elas são. Assim, já de saída, ele estabelecia que “as leis, em seu significado mais extenso, são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas”116, ou seja, as leis são relações, não emanam de uma causa transcendente, o poder não tem origem divina117. Nesse livro, é elaborado um modelo de reforma, moderadamente constitucional e liberal, para a monarquia francesa. Assim, Montesquieu construiu uma tipologia com três formas de governo: monarquia, república (democracia e aristocracia) e despotismo. A cada uma correspondia um princípio: respectivamente, honra, virtude e temor. Quanto à monarquia, forma de governo que mais recebe sua atenção no Espírito das leis, era definida como um governo em que existiam poderes intermédios, cujo principal era exercido pela nobreza. Assim, a máxima fundamental da monarquia é que se não há monarca, não há nobreza; e se não há nobreza, não há monarca. A liberdade civil só pode ser garantida pela separação de poderes: legislativo, executivo e judiciário.

Paralelamente aos trabalhos de Montesquieu desse período, apareceram as obras de maior vigor de um dos gênios lampadóforos da Ilustração, François Marie Arouet, dito Voltaire (1694-1778). São desse mesmo momento suas Cartas filosóficas ou Cartas inglesas (1733-1734), em que Voltaire atacava o fanatismo religioso e manifestava sua admiração pelo governo parlamentar, ao mesmo tempo que difundia a obra de Isaac Newton. Ao longo da década de 1750, Voltaire publicou obras fundamentais da Ilustração. São desse período seus textos O século de Louis XIV (1751), Ensaio sobre os costumes (1756), Poema sobre o desastre de Lisboa (1756) e Cândido (1759), sua mais famosa obra. Voltaire fazia, como muitos outros filósofos do Iluminismo, uma filosofia militante. Ele se distinguiu por suas “frentes de batalha”. Condenou a tortura e foi um defensor incansável da tolerância, como se pode ver nas posições que tomou durante o “caso Calas”.

Em Candido, “conto filosófico”118, Voltaire atacou violentamente a idealística doutrina da harmonia preestabelecida e do ‘melhor dos mundos possíveis’ promovida por Gottfried Wilhelm Leibniz”119. Essa obra foi provocada em grande parte pelos trágicos acontecimentos do terremoto de Lisboa de 1755. Assim, diante do mal, “Voltaire abandonou qualquer responsabilidade à explicação metafísica das questões humanas”120. Se não devemos ser otimistas a toda prova, do que ele parecia acusar Leibniz, tampouco, como diz Sérgio Milliet, devemos encarar a lição contida em Candido como um “breviário do pessimismo”. Segundo Milliet, nesse momento de sua carreira, Voltaire desenvolveu uma nova filosofia, a do “melhorismo”: “tudo não está bem, mas pelo trabalho e a moralidade tudo estará melhor no futuro”121. Era isso que parecia significar seu famoso conselho, ao terminar seu famoso conto: “cultivar nosso jardim”.

Jean-Jacques Rousseau.
Figura 50. Jean-Jacques Rousseau.

Em 1751, veio a público o Discurso sobre as ciências e as artes do suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), o maior pensador político da Ilustração. Rousseau não era natural da França, mas era suíço de língua francesa e sua carreira foi feita basicamente naquele país. Como ele mesmo contava, foi no caminho para o castelo de Vincennes, quando lá ia para visitar Diderot, que ali estava preso, que foi tomado por um processo “epifânico” ao ler a notícia referente ao concurso da Academia de Dijon, que colocava a seguinte questão: “o renascimento das artes e das ciências contribuiu para a purificação moral?” A resposta a essa questão girou sobre o tema do ser e do parecer, e na contracorrente das Luzes, afirmava que foi a saída do homem do estado de natureza que produziu sua decadência moral. Enunciava-se aí o Rousseau paradoxal. Conforme o autor de Rousseau: um guia para perplexos,

ele era um artista tímido que admirava generais e conquistadores. Ele valorizava a amizade acima de tudo e no entanto morreu só. Ele escreveu uma obra prima sobre educação, mas abandonou seus próprios filhos em orfanatos. Ele incensava a virtude cívica enquanto era perseguido em três diferentes países. Ele contribuiu para a maior empreendimento científico de seu tempo, contudo acreditava que a ciência corrompia a moral. Ele compôs uma bem-sucedida opera lírica em francês, enquanto argumentava que a língua francesa era inadequada ao lirismo.122

Contudo, após o prêmio que ele acabou ganhando no concurso da academia de Dijon, sua aventura não parou mais. Após o que se convencionou chamar de o primeiro discurso, viria o ainda mais impactante segundo discurso, o Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, seus verbetes para a Enciclopédia, entre eles o Discurso sobre economia política, e a Carta a d’Alembert sobre os espetáculos, que marcou seu rompimento com a corporação dos philosophes. Na década 1760, sairiam seus trabalhos mais importantes, como o popularíssimo romance Julie, ou la Nouvelle Héloise (1761), e trabalhos que mudariam o pensamento político do século XVIII, como o Contrato social (1762) e Emílio ou da educação (1764). 

Capa da Enciclopédia.
Figura 51. Capa da Enciclopédia.

Abordando a política mais como um moralista, Rousseau já acusara, nos dois discursos, a civilização de negar a natureza123, isto é, o homem de natureza perde sua bondade natural ao se civilizar. No Emílio, ele retomava essa mesma crítica. Mas como permitir ao homem voltar à sua condição perdida? Como conciliar natureza e civilização? Certamente não fazendo o relógio da história voltar atrás. A resposta encontra-se na república.

Todavia, para que se possa fazer essa interpretação do rousseauísmo é necessário entender que o seu jusnaturalismo, como acontecia muitas vezes com Rousseau, fugia à norma. Seu modelo jusnaturalista não era um modelo diádico, estado de natureza-estado civil, mas sim um modelo triádico, estado de natureza-estado civil-república124. Foi a partir desse modelo que Friedrich Engels, em seu Anti-Düring125, viu um Rousseau revolucionário, ao propor a leitura do Contrato social como uma sequência do Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens. Nessa forma de leitura da obra do genebrino, a sociedade se faz negando a natureza, mas aquela, por sua vez, é negada pela República. Produz-se a solução revolucionária da “negação da negação”. A igualdade original do homem que tinha sido perdida com sua entrada no estado civil, agora é novamente recuperada, mas como “a igualdade mais elevada do contrato social”126

Também seguiram esse caminho de uma leitura justaposta da obra de Rousseau, Emmanuel Kant e Ernst Cassirer. Contudo, estes autores deixaram de lado a ideia de revolução e deram importância à educação como conciliadora dos opostos127. Assim, preferiram colocar o Emílio ou da educação entre o Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens e o Contrato social. Caberia à educação a função de reconciliar “a natureza e a cultura em uma sociedade que redescobre a natureza e supera as injustiças da civilização”128.

Também foram desse “segundo Iluminismo” as primeiras obras de Denis Diderot (1713-1784) e a Enciclopédia. Segundo Peter Gay, Diderot era, “com quase igual competência, tradutor, editor, dramaturgo, psicólogo, crítico de arte e teórico, novelista, estudioso clássico e reformador educacional e ético”129. Em 1746, ele publicou sua primeira grande obra, Os pensamentos filosóficos, no qual abraçava o ceticismo teológico130. Seguiu-se sua famosa Carta sobre os cegos (1749), que lhe valeu uma estadia na prisão em Vincennes.

Além dessas obras, o contributo fundamental de Diderot foi a organização da obra emblemática da Ilustração, a Enciclopédia. O primeiro volume da Enciclopédia, organizada em parceria com Jean le Rond d’Alembert (1717-1783), apareceu em 28 de junho de 1751, tendo sua publicação se desenrolado até 1772. Ela foi o livro símbolo do movimento das Luzes, já que teve por empreitada abarcar todo o conhecimento disponível, colocando sob a investigação racional todos os temas relevantes da época. Além disso, ela “estabeleceu o modelo para a enciclopédia como um multivolume, multiautor, ilustrado trabalho de referência em ordem alfabética ainda predominante hoje em dia”131. Segundo Monique Cotret, ela era retardatária em matéria de técnica e conservadora politicamente, mas preconizava a liberdade econômica, a tolerância e uma melhor divisão das riquezas.132

Iluminismo e Revolução

Já desde o tempo da Revolução Francesa aqueles que se opuseram a ela tentaram nos habituar a uma relação direta de causa e efeito entre o Iluminismo e a Revolução, foi a famosa “la faute à Rousseau” (a culpa é de Rousseau). Como afirma John Kenneth Wright, esse tipo de explicação causal “é fácil de desconsiderar em suas formas hiperbólica ou conspiracional”133. De fato, a Época das Luzes foi, como mostramos, fundada na contestação do sagrado, da autoridade e da tradição. Contudo, os philosophes rejeitavam tacitamente a revolução, defendendo um programa com dupla característica.

De um lado, a rejeição da revolução foi feita em benefício da reforma, da necessidade que viam em reformar a monarquia absoluta. Por outro, em decorrência dessa concepção reformista, defendiam alguns poucos pontos que precisavam ser reformados e não o conjunto da sociedade. Se, por temor ao que tinha acontecido no passado, vinha à lembrança particularmente a Revolução Inglesa, o fato é que o espírito predominante desses homens era a moderação. E essa condenação da revolução em benefício da reforma podia ser vista no próprio Robespierre, que em uma passagem famosa escrita antes da Revolução afirmava que não se devia “mudar todo o sistema de nossa legislação; de buscar o remédio de um mal particular em uma revolução geral frequentemente perigosa”134.

Todavia, é inegável que o Iluminismo cumpriu o papel do que Lawrence Stone chamou, em sua tipologia causal da Revolução Inglesa, de precondições, as causas de longo prazo dessa Revolução, entre as quais ele incluía as ideias, já que “uma verdadeira revolução precisa de ideias que a alimentem”135. Podemos destacar dois autores já aqui tratados que cumpriram esse papel de referencial ideológico: Montesquieu e Rousseau.

A obra de Montesquieu possui uma relação que podemos chamar de ambígua com a Revolução. Nos momentos iniciais da Revolução, a tentativa de reforma da monarquia centrada no resgate do antigo papel político da nobreza, o que implicava a ideia de valorizar os corpos intermediários e a divisão dos poderes, foi vista pelo “partido patriota” como um programa inaceitável. Esse partido rejeitou em bloco tanto esse programa quanto o pensamento de Montesquieu, ao qual faziam apelo os nobres conservadores.

Desse modo, os revolucionários acabaram por estabelecer um afastamento em relação ao pensamento de Montesquieu, bem na linha das críticas que lhe foram endereçadas pelas cartas apócrifas atribuídas a Helvétius, nas quais se afirmava que as ideias contidas no Espírito das leis tendiam a justificar a ordem estabelecida e o regime dos privilégios136. Montesquieu recebeu, assim, o rótulo de “primeiro autor aristocrata”137, já que os revolucionários, tanto quanto seus adversários, lembravam-se de sua afirmativa de que a máxima fundamental do regime monárquico era que “sem monarca, não há nobreza; sem nobreza, não há monarca”, máxima essa evocada, por exemplo, por um dos campeões da reação, Jean Siffrein Maury (1746-1817), o abade Maury.138

Contudo, Montesquieu teve uma importância fundamental para o ideário revolucionário na medida em que teve um papel central na história do humanismo cívico francês, e não porque o autor do Espírito das Leis fosse republicano em qualquer sentido do termo, mas sim porque estabeleceu os termos com que o republicanismo foi discutido pelo resto do século139. É por isso que se pode falar de um Montesquieu dos jacobinos como se fala de um Rousseau dos jacobinos, já que o autor do Espírito das leis estabeleceu para os jacobinos os quadros da “reflexão sobre a história antiga, sobre o modelo antigo de república, sobre a virtude republicana, sobre o controle da paixão”140.

Contudo, não é menos verdadeira a afirmação de Alexis Tocqueville, de que, “no início [da Revolução], é Montesquieu que se cita e que se comenta; no fim, apenas se fala de Rousseau. Ele tornou-se e vai permanecer o preceptor único da Revolução em sua primeira época”141, já que o pensamento político que estava por trás das ideias que marcaram a Revolução Francesa foi, de forma mais abrangente e penetrante do que o de Montesquieu, a “ideologia rousseauísta”142. Isso significa dizer que muitos dos personagens da Revolução fizeram referências explícitas a Rousseau, ao mesmo tempo que existiu um sem-número de discursos políticos revolucionários em que essa referência explícita não era feita, mas nos quais se podia constatar implicitamente a influência daquela ideologia.

O mesmo processo se reproduz de forma mais difusa entre os setores populares. Maurice Genty afirma, a propósito dos militantes secionários de 1789, que somente excepcionalmente

referências explícitas são feitas aos teóricos do século XVIII, mesmo a Rousseau, mas o pensamento deste último precisamente impregnava a tal ponto os espíritos que ele é encontrado continuamente, sem que tais referências tenham parecido necessárias.143

Esse militante secionário de 1789 ainda pertence à burguesia, pois dos extratos sociais do Terceiro Estado só ela podia alcançar o censo eleitoral. Portanto, era a burguesia que estava impregnada pela ideologia rousseauísta. Porém o mesmo se repetiu com o movimento popular sans-culotte, quando este passou a dominar as seções eleitorais a partir da instalação da república em agosto de 1792, defendendo com frequência noções que se encontravam no autor do Contrato, tendo consciência disso ou não. Conforme Albert Soboul, “quer se examinem as aspirações sociais, quer as tendências políticas da sans-culotterie parisiense, é flagrante a sua ressonância ou a sua filiação rousseauísta”144.




91 WRIGHT, Johnson Kent. Enlightenment. In: DEWALD, Jonathan (Ed.). Europe 1450 to 1789: encyclopedia of the early modern world. New York: Thomson/ Gale, 2004. v. II, p. 299.

92 Idem, p. 301.

93 ISRAEL, Jonathan Irvine. Radical enlightenment: philosophy and the making of modernity, 1650-1750. Oxford: Oxford University Press, 2001. p. 3 e ss.

94 COTRET, Monique. Lumières. In: BÉLY, Lucien (Dir.). Dictionnaire de l’Ancien Régime. Paris: PUF/Quadrige, 2002. p. 768.

95 HAZARD, Paul. La crise de la conscience européenne 1680-1715. Paris: Fayard/Le livre de Poche/Références, 1961. p. 9.

96 DIAZ, Furio. Europa: de la Ilustración a la Revolución. Madri: Alianza, 1994. p. 26.

97 DIAZ, Furio. Op. cit., p. 27.

98 HAMPSON, Norman. O século das Luzes. Paris: Seuil/Points, 1972. p. 13.

99 WRIGHT, Johnson Kent. Enlightenment. In: DEWALD, Jonathan (Ed.). Europe 1450 to 1789: encyclopedia of the early modern world. New York: Thomson/ Gale, 2004. v. II, p. 299.

100 HAZARD, Paul. Op. cit., p. 12.

101 “De fato, ninguém durante o século 1650-1750 remotamente rivalizou a notoriedade de Spinoza como o principal desafiador dos fundamentos da religião revelada, ideias herdadas, tradição, moralidade e o que era em toda parte visto, nos estados absolutistas ou não absolutistas, como autoridade política divinamente constituída”. ISRAEL, Jonathan. Op. cit., p. 159. 102 DIAZ, Furio. Op. cit., p. 22.

102 DIAZ, Furio. Op. cit., p. 22

103 NADLER, Steven. Spinoza. In: DEWALD, Jonathan (Ed.). Europe 1450 to 1789: encyclopedia of the early modern world. New York: Thomson/Gale, 2004. v. II, p. 505.

104 POPKIN, Richard H. The History of skepticism: from Savonarola to Bayle. Oxford: Oxford University Press, 2003. p. 239.

105 HAMPSON, Norman. Op. cit., p. 21.

106 NADLER, Steven. Spinoza’s Heresy: immortality and the Jewish Mind. Oxford, Oxford University Press, 2001. p. 21-22.

107 ISRAEL, Jonathan Irvine. Radical enlightenment: philosophy and the making of modernity, 1650-1750. Oxford: Oxford University Press, 2001. p. 22. 108 Idem, p. 523.

108 Idem, p. 523.

109 Richard Popkin. Citado em: LENNON,Thomas M. Pierre Bayle. IN: DEWALD, Jonathan (ed.) Europe 1450 to 1789. Encyclopedia of the early modern world. Nova Yorke, Thomson/Gale, 2004. Vol. 1, p. 239.

110 COTRET, Monique. Op. cit., p. 767.

111 LENNON, Thomas M. Pierre Bayle. In: DEWALD, Jonathan (Ed.). Europe 1450 to 1789: encyclopedia of the early modern world. New York: Thomson/Gale, 2004. v. I, p. 238.

112 COTRET, Monique. Op. cit., p. 768.

113 Ibidem.

114 DIAZ, Furio. Europa: de la Ilustración a la Revolución. Madri: Alianza, 1994. p. 97

115 Apud DIAZ, Furio. Europa: de la Ilustración a la Revolución. Madri: Alianza, 1994. p. 97-98.

116 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, barão de. O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 11.

117 COTRET, Monique. Op. cit., p. 768.

118 GAY, Peter. The enlightenment, an interpretation. The rise of modern paganism. New York: The Norton Library, 1977. p. 198.

119 RILEY JR., Patrick. Voltaire. In: DEWALD, Jonathan (Ed.). Europe 1450 to 1789: encyclopedia of the early modern world. New York: Thomson/Gale, 2004. v. VI, p. 183.

120 Ibidem.

121 MILLIET, Sergio. Notas introdutivas. In: VOLTAIRE. Contos. São Paulo: Abril, 1980. p. 150.

122 SIMPSON, Matthew. Rousseau: a guide for the perplexed. Londres: Continuun, 2007. p. 01.

123 STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 41.

124 BOBBIO, Norberto. Sociedade e estado na filosofia política moderna. São Paulo, Brasiliense, 1994. p. 55.

125 STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 41.

126 Ibidem.

127 Idem, p. 42.

128 Ibidem.

129 GAY, Peter. Op. cit., p. 14.

130 RILEY, JR., Patrick. Diderot. In: DEWALD, Jonathan (Ed.). Europe 1450 to 1789: encyclopedia of the early modern world. New York: Thomson/Gale, 2004. v. II, p. 145.

131 BLAIR, ANN. Dictionaries and encyclopedias. In: DEWALD, Jonathan (Ed.). Europe 1450 to 1789: encyclopedia of the early modern world. New York: Thomson/Gale, 2004. v. II, p. 143.

132 COTRET, Monique. Op. cit., p. 789.

133 WRIGHT, Johnson Kent. Op. cit., p. 304

134 Discours sur les peines infamantes (1784). OCR, t. I, p. 42.

135 STONE, Lawrence. Causas da Revolução Inglesa. Bauru: Edusc, 2000. p. 178.

136 STAROBINSKI, Jean. Montesquieu. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 159, nota única.

137 BARNY, Roger. Robespierre et les Lumières. In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli (Ed.). Op., cit. p. 50

138 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, barão de. O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 26. Para o abade Maury, cf. OZOUF, Mona. Igualdade. In: FURET, François; OZOUF, Mona. Dicionário crítico da Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. p. 745.

139 WRIGHT, Johnson Kent. A classical republican in eighteenth-century France: the political thought of Mably. Stanford: Stanford University Press, 1997. p. 202.

140 Conclusões de Paolo Viola. Citado em: ARMANDI, Marco (Org.) Robespierre. Dizionario delle idee. Roma: Editori Riuniti, 1999. p. 160, nota 59.

141 TOCQUEVILLE, Alexis. L’ancien Régime et la Révolution. Paris: Gallimard, 1980. Obras Completas. T. II, livre II, chap. V, p. 106-107.

142 BARNY, Roger. Jean-Jacques Rousseau dans la Révolution. Dix-Huitième Siècle, Paris, v. 6, p. 59-98, 1974. p. 60.

143 GENTY, Maurice. Op. cit., p. 36.

144 SOBOUL, Albert. Camponeses, sans-culottes e jacobinos. Lisboa: Seara Nova, [s.d.]. p. 207.

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