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Capítulo 3 Absolutismo: conceitos e teorias

A modernidade foi fruto da crise que resultou no desaparecimento de uma sociedade de ordens, típica da Idade Média, governada pela autoridade política, religiosa e cultural representada pela figura do imperador e do papa. Sociedade que, negando as liberdades individuais, valorizava os grandes organismos coletivos: a Igreja e o Império, mas também a família e a comunidade. Esse modelo entrou em crise no final do século XV, quando a Europa se laicizou economicamente (fortalecimento do comércio) e politicamente (nascimento dos estados nacionais), mas também ideologicamente (pela separação do mundano e do religioso e pela afirmação da centralidade no homem).

O historiador português António Manuel Hespanha, comentando sobre o contexto, afirma que os séculos XV e XVI foram épocas de grandes modificações nos horizontes culturais e sociais europeus:

A Reforma quebra a unanimidade religiosa, o Renascimento provoca uma mudança nos modelos do gosto e também nas referências culturais. Os Descobrimentos tornam conhecidos outros mundos e outras culturas, algumas delas totalmente desconhecidas até então, outras radicalmente diferentes da europeia. Muito do que parecia indiscutível e natural, revela-se problemático e artificial. Nestas circunstâncias, torna-se muito difícil continuar a acreditar numa ordem estável do mundo, onde cada coisa tenha um lugar fixo, insensível às mudanças dos tempos ou das latitudes.38

Nessa Europa assolada por uma série de conflitos é que os Estados modernos iriam se consolidar progressivamente, mediante a configuração de elementos essenciais tais como: a nação soberana dentro de um território delimitado; o interesse geral expresso mediante a lei, com base na autoridade e no poder do Estado; o monopólio da força, onde o Estado é a única fonte legítima de violência dentro de seus limites territoriais, e as burocracias funcionais apresentadas como aparatos especializados, encarregados de cumprir com as funções estatais.39 Vejamos com mais propriedade tal temática.

Europa, séc. XV.
Figura 26. Europa, séc. XV.

O Absolutismo e a ordem política

O historiador Marcos Antônio Lopes afirma que o nascimento do Estado moderno nos séculos XVI e XVII, representado principalmente pelas monarquias absolutistas, foi considerado por muitos como o mais importante fenômeno político dos tempos modernos:

E isso porque as monarquias absolutistas empreenderam grandes realizações no panorama histórico ocidental: aprofundaram as identidades nacionais, por oposição à visão localista e fragmentadora da aristocracia; incentivaram as Ciências, por intermédio do mecenato a grandes talentos individuais e mediante o apoio às academias reais, desenvolvendo também as artes, a economia, as leis e a justiça – por meio de um novo e complexo aparato jurídico –, além de limitarem as pretensões de hegemonia do poder espiritual da Igreja sobre a esfera secular.40

Cabe, contudo, considerar que o aparecimento de um tipo de governo centralizado seguiu ritmos próprios nos diferentes territórios. O longo processo de definição de contornos nacionais teve início ainda no século XII. Na Península Ibérica, depois da vitória definitiva das armas cristãs sobre os muçulmanos, nasceram o reino de Aragão e o de Portugal; consolidaram-se como estados fortes. Por meio de uma história inteiramente diversa, o reino de França consolidou-se com a pressão da monarquia sobre as classes feudais e por meio da exaltação do elemento citadino; e a Inglaterra, com a aliança triunfante das várias camadas sociais contra a monarquia. Nesse contexto, a Guerra dos Cem Anos teve um efeito importantíssimo na criação da monarquia centralizada na França. Ao término da Guerra, em 1453, desaparece a soberania do príncipe inglês sobre grande parte de seu território e principia a obra centralizadora que se estenderia desde Luís XI (reinado de 1461 a 1483), coroando-se finalmente no longo reinado de Luís XIV (1643-1715). A partir de 1539 o francês passa a ser a língua obrigatório nos documentos oficiais, em substituição ao latim. Luís XIV delimitou o território francês com base em expressivos acidentes geográficos, o que lhe assegurou a configuração preservada basicamente ao longo dos séculos seguintes.41

Ilustração representando a batalha de Azincourt em 1415 (Dia de São Crispim), no norte da França durante a Guerra dos Cem Anos.
Figura 27. Ilustração representando a batalha de Azincourt em 1415 (Dia de São Crispim), no norte da França durante a Guerra dos Cem Anos.

No coração da Europa, na região da Alemanha, verificou-se a prevalência dos grandes feudatários, contudo se acentuou uma política nacionalista, enquanto um novo Estado dele se desmembrou, a Áustria. Ao Norte, afirmaram-se os estados escandinavos, com predomínio do reino da Dinamarca; surgiram os reinos da Lituânia, da Polônia, da Rússia; enquanto ao Sul a Hungria, a Sérvia, a Croácia, a Bulgária, a Romênia e a Albânia consolidaram-se como estados. Eram ordenamentos políticos novos ou em renovação, que se ergueram sobre um fundo turbulento de lutas gigantescas, em que os povos europeus empenharam-se frequentemente contra forças externas (dos muçulmanos no Sul aos mongóis no Leste). E, como organismos jovens, não queriam sentir-se ligados pelas amarras de ideologias tradicionais, ainda que como estados cristãos, vinculados à Igreja de Roma, não podiam, pela estrutura mesma do mundo medieval, ignorá-las.42

Jean Delumeau, comentando sobre o cenário, destaca que no início do século XIV a Europa era ainda uma nebulosa de formas indecisas e futuro incerto, porém dois séculos depois, as divisórias políticas do continente já aparecem consolidadas em grandes linhas. A época do Renascimento corresponde, segundo o autor, ao período em que a Europa se definiu politicamente.43

Deve-se ainda considerar que o processo de consolidação nacional se mescla, em grande medida, à questão religiosa. Esse é o caso, por exemplo, da independência dos Países Baixos, cuja guerra para extinguir o jugo espanhol teve caráter nitidamente religioso, porquanto os dominadores nutriam a ambição de extinguir o protestantismo, nos fins do século XVI. Também o rompimento de Henrique VIII (1509 a 1564) com o Papado consumou-se, sobretudo, graças à disputa religiosa que resultou na criação da Igreja Anglicana.

A Batalha de Lens, 1648, a última da Guerra dos Trinta Anos.
Figura 28. A Batalha de Lens, 1648, a última da Guerra dos Trinta Anos.

No Continente, o marco decisivo tornou-se a Guerra dos Trinta Anos (1616-1648). Iniciada como uma guerra civil alemã, acabou arrastando outras Potências. Os católicos apoiavam abertamente os Habsburgo no seu propósito centralizador, enquanto os protestantes estavam unidos em torno dos príncipes de idêntica religião, na sua intenção de preservar a independência. Em 1648 firmou-se o Tratado de Westfalia, que pôs fim às guerras religiosas, uma vez que era reconhecido a cada governante o direito de escolher livremente entre as três religiões (católica, luterana e calvinista). Os súditos que não aceitassem a escolha podiam emigrar com seus bens. Cada Estado Alemão era independente dentro do Império, sendo o Imperador escolhido em eleições. Além disso, os limites dos vários Estados europeus passaram a ser determinados por um tratado a que todos se obrigaram, o que implicou o reconhecimento de que a Europa estava dividida em Estados Nacionais.44

Europa em 1648, após o Tratado de Westfalia.
Figura 29. Europa em 1648, após o Tratado de Westfalia.

Lopes, fazendo um balanço sobre o cenário, afirma que ao longo do século XVI, a ausência de um poder eminente situado acima da sociedade levou muitas vezes à desagregação social, como ao tempo das guerras de religião entre as grandes casas nobiliárquicas, quando uma conjuntura de lutas internas fez o reino mergulhar na guerra civil. Contudo, a má organização estatal do início do século XVI foi superada no século seguinte, embora no século XVII nenhum Estado europeu pudesse ser avaliado como um primor em termos de ordem administrativa. Mas ao longo desse século, as monarquias europeias se desembaraçaram das dificuldades dos tempos de desordens e de guerras civis. Consolidou-se o sentimento de maior lealdade ao rei, bem como ao Estado que ele representava. A monarquia absolutista personificada pelo príncipe de direito divino tornou- -se, em teoria e na prática, a resposta mais eficaz aos anseios por segurança e ordem no século XVII.45

Absolutismo: reflexões sobre conceitos

Dos Seiscentos aos nossos dias, muitos autores discutiram a autoridade e legitimidade dos Estados modernos. As preocupações centrais desses pensadores giravam em torno de questões como as origens do Estado e o exercício de sua soberania ante os súditos. Dessa forma, qualquer análise historiográfica sobre o Estado moderno deve levar em conta a multiplicidade de características, transformações no tempo e as dificuldades dos historiadores em formular uma definição única e consensual.

Até o final do século XVIII, os que se ocuparam com a compreensão das questões políticas de seu tempo corroboraram a construção de um modelo de interpretação cuja principal característica centrava-se na autonomização do Estado em relação à sociedade. O Estado surgia como um poder soberano e absoluto, que empreendia suas estratégias de ação para um controle consentido dos homens em sociedade. A ideia de um poder absoluto (potestas absoluta), cujas origens remontam à Antiguidade pagã do século III, em boa parte da literatura política da Idade Moderna ganhava corpo no conceito de Estado. Ou seja: os caminhos distintos que conduziram aos processos de formação dos Estados nos tempos modernos eram pensados em função de uma linearidade do poder soberano, e o conceito de Estado passaria a ser utilizado como sinônimo de soberania e de poder absoluto.46

Ratificação do Tratado de Münster (1648), que inaugurou o moderno sistema internacional pautado no princípio da soberania estatal.
Figura 30. Ratificação do Tratado de Münster (1648), que inaugurou o moderno sistema internacional pautado no princípio da soberania estatal.

Contudo, é importante perceber que o conceito de Estado, por ser um conceito político-social, tem uma história de diferentes conteúdos, os quais variam dependendo de cada época, cultura e tradição.47 Afinal, as ideologias políticas nunca aparecem desgarradas ou independentes das estruturas sociais. As ideias legitimadoras do poder régio que marcaram os primeiros séculos do mundo moderno, aproximadamente dois séculos, foram produzidas em meio a contextos históricos quase sempre marcados por crises políticas e lutas sociais, além do processo de aceleração da economia europeia na época das grandes navegações, como também foi resultado de tensões e disputas no interior das fronteiras nacionais, como visto.

Lopes afirma que tal contexto pontuado por crises políticas e sociais acabou por suscitar uma aspiração da sociedade por um poder forte, que muito mais tarde os historiadores denominariam como “a monarquia absolutista”, ou seja, um sistema político de âmbito europeu. Contudo, observa o historiador, os reis à época nunca se autodeclararam absolutistas:

E não é demais lembrar que o conceito [de absolutismo] não foi contemporâneo ao objeto histórico retratado. Isso porque os reis à época das monarquias absolutistas nunca se autodeclararam “absolutistas”. A expressão monarquia absolutista – como o próprio termo absolutismo – é um conceito operacional, que foi elaborado algum tempo depois de cessado o fenômeno histórico que a expressão tentou definir, fruto que foi do emprego intelectual feito por filósofos e historiadores liberais do século XIX, já no âmbito da posteridade.48

É por isso que o historiador Richard Bonney define absolutismo como uma “etiqueta póstuma”, visto que raramente os reis ou ministros nos séculos XVI e XVIII empregaram o termo absoluto como forma de sistema político.49 A expressão de uso corrente à época consistia em “potestas absoluta”, que definia a natureza específica da soberania exercida pela realeza. Conforme a definiu Jean Bodin – um dos grandes teóricos do absolutismo –, era a prerrogativa da exclusividade de mando, mas não o direito do mando sem barreiras, já que o soberano está limitado pelas leis divinas e naturais.50

Convém lembrar que a prerrogativa da exclusividade de mando estava intimamente associada à justiça, a principal virtude a ser observada pelo monarca desde o medievo até a modernidade. Antônio Manuel Hespanha explica que a noção de poder absoluto está ligada à percepção de que o rei é o juiz supremo e não reconhece nenhuma autoridade política acima de si, dentro de seu reino. Contudo, alerta o autor, o poder soberano central se consolida incorporando diversos poderes locais. Em sua análise, a forma senhorial-clientelar de organização político-administrativa faz parte de uma lógica cultural que perpassa todo corpo político, cujos efeitos agregativos foi a centralização política, o que, todavia, não pressupõe o fim dos corpos de privilégios ou a despatrimonialização das instituições.51

Teorias sobre o Absolutismo

Entre o século XI e inícios do XIV, juristas, teólogos e filósofos fixaram as principais teorias a respeito da autoridade do príncipe. Alguns deles mantiveram a ênfase na supremacia da lei, eventualmente confundida com a supremacia da comunidade. Outros acentuaram a ideia do príncipe legislador. De modo geral, porém, não se renegava a ideia do governo fundado no bem público.

Nicolau Maquiavel, século XVI.
Figura 31. Nicolau Maquiavel, século XVI.

No que diz respeito aos teóricos do Absolutismo é possível identificar vertentes distintas. A primeira delas nasceu ainda no contexto do Renascimento com Nicolau Maquiavel (1469-1527) na sua obra O Príncipe. O pensador florentino inaugurou a tradição secular, anticristã, fundada no príncipe conquistador portador da virtù, entendida como a qualidade da flexibilidade moral, astucioso e heroico, independente do quadro das virtudes cristãs. Apesar de sua obra provocar um verdadeiro cataclismo, segundo Quentin Skinner, o alvorecer da modernidade é antimaquiavélico.52 Marcos Lopes destaca que:

Com sua nova visão da política, convertendo-a numa categoria à parte de princípios morais, Maquiavel desferiu alguns golpes bem rudes no ideal da realeza cristocêntrica e hereditária, legado transmitido pelas tradições da Idade Média à cultura da Época Moderna. Contudo, ele não conseguiu esvaziá-la de seu conteúdo teológico-religioso. A prova disso está no fato de a teoria do direito divino dos reis ter se desenvolvido e se consolidado como base doutrinal de Estados monárquicos europeus — particularmente a Inglaterra dos Stuarts e a França dos Bourbons — muito tempo depois de ele ter escrito seus livros. Mas é sabido que o autor não negou o valor dos princípios éticos. Apenas os dissociou da política, liberando o príncipe para executar algumas manobras que seriam inconcebíveis se ele tivesse de se pautar por qualquer espécie de freio moral. Ao declarar o príncipe livre de toda restrição legal e moral, apregoando um novo catecismo de realismo político, Maquiavel somente podia argumentar que a força era a essência da justificação do poder. Isso é como afirmar que ao príncipe é lícito tudo aquilo que não o é ao homem comum.53

Tanto sua época quanto os séculos seguintes continuaram ligados à tradição medieval que valorizava o rei virtuoso e cristão. Essa foi a ideia predominante na construção mística da realeza teológica-política. Entre os teóricos do Direito Divino dos Reis destaca-se Jacques-Bénigne Bossuet (1627-1704), bispo francês, que foi inclusive tutor de Luís XIV. Segundo seu argumento, antimaquiavélico por excelência, o rei, representante de Deus na terra, era visto como um pai que devia conduzir os destinos de seus filhos. Em Bossuet estava presente a concepção organicista da sociedade, cuja cabeça é o Rei, numa clara apropriação da doutrina cristã medieval do “corpo místico”. Seu tema foi o rei-Deus, representante da providência, zelador do bem comum. Assim, o Estado monárquico reunia tanto as esferas religiosas e políticas quanto o aparato jurídico e a liturgia cristã, bem como a base sagrada e a burocracia. Nesse sentido, era moderno e ainda medieval.

Os cinco primeiros livros da Politique de Bossuet, destinados ao Delfim, inserem-se nesse movimento de exaltação à glória monárquica. Bossuet dedicou-os a falar da origem do poder e da autoridade do príncipe. Com isso, a teoria do direito divino, justificadora do absolutismo, que já se conhece há tempo, atinge o seu ponto culminante. Compete, contudo, lembrar que desde as civilizações da Antiguidade oriental, tem sido prática comum justificar o poder da realeza por delegação divina. Mas foi no século XVII que a divinização da realeza atingiu o clímax. Conforme afirma Marc Bloch, “o século XVII, mais que qualquer outra época, sublinhou abertamente a natureza quase divina da monarquia e, até, do rei”.54

Jacques-Bénigne Bossuet, 1702.
Figura 32. Jacques-Bénigne Bossuet, 1702.

Cabe destacar que o direito divino dos reis foi uma doutrina complexa e paradoxal. Ao mesmo tempo que davam direitos ao rei, também se estipulavam seus deveres perante a religião. Tal doutrina, de fato, fortalecia o poder do monarca, ao defender que era delegado diretamente de Deus, e que por isso não podia ser contestado. Por outro lado, enfraquecia a autoridade real ao apontar a necessidade de cultuar um conjunto de virtudes que limitavam o poder de ação. Conforme Marcos Lopes:

É necessário estabelecer o primeiro e maior efeito contraditório do direito divino; por paradoxal que pareça, as doutrinas de legitimação transcendente [...] atuam como instrumentos inibidores do poder absoluto do monarca. [...] o rei é o primeiro súdito de Deus. Assim sendo, tem interditadas pelos preceitos da religião quaisquer ações que comprometam sua condição de rei cristianíssimo. Ainda que sua finalidade fosse fundamentalmente oposta, o direito divino pode atuar também como instrumento de limitação do poder do monarca. Na Europa Moderna, um poder ilimitado, no sentido pleno da expressão, determinado por Delegação divina, nunca existiu de fato.55

De fato, a monarquia absolutista francesa não se consolidou apenas por seus aparatos técnicos e burocráticos, mas com a ajuda de todo um simbolismo religioso que a envolvia. Foi na segunda metade do século XVII que o absolutismo francês conheceu seu momento de maior esplendor sob o comando de Luís XIV. A doutrina do direito divino dos reis contribuiu poderosamente para o fortalecimento da monarquia francesa. Nesse período, quase todos os gêneros literários, fossem políticos ou não, versavam sobre ou incluíam em seus discursos a exaltação das virtudes morais da realeza sagrada.56

Luís XIV, rei da França (1638-1715).
Figura 33. Luís XIV, rei da França (1638-1715).

A doutrina do direito divino dos reis foi muito criticada em seu próprio tempo, e bastante ridicularizada por pensadores dos séculos XVIII e XIX, período de afirmação crescente das teorias políticas liberais. Isso fez com que muitos historiadores a desprezassem como objeto de estudo. No entanto, é preciso levar em consideração que tal doutrina, no século XVII, foi defendida com grande vigor teórico, e com apaixonada crença política e religiosa, por ser um misto de ambas as coisas. Toda a sociedade política, dos reis aos súditos, aceitou-a como um elemento “natural” na esfera da vida pública e até privada. A doutrina do direito divino dos reis, como se apresentou no século XVII, foi “essencialmente uma teoria popular, proclamada desde o púlpito, apregoada em praça pública e defendida no campo de batalha”.57

Talvez um caminho para compreender o clamor por um poder forte, sagrado se possível, seja considerar a instabilidade e a desordem enquanto males comuns à maior parte das sociedades europeias do século XVII. Como visto, o período foi marcado por uma sucessão interminável de grandes conflitos senhoriais que são desdobramentos da “Guerra dos Cem Anos”, da “Guerra das Duas Rosas”, das “Guerras da Itália”, das “Guerras de Religião”, da “Guerra dos Trinta Anos”, das revoltas camponesas contra os desmandos e a exploração das diversas aristocracias. Tais confrontos armados são um traço marcante, sintomático mesmo, da relativa fragilidade do poder e da luta encarniçada por ele.

Foi contra esse clima de desordem que Thomas Hobbes (1588-1679) escreveu o Leviatã, traçando em seu livro as regras do poder político unitário e indivisível. Retomando a questão da secularização da política, a obra representou um momento decisivo nesse processo sem, todavia, romper com a tradição absolutista – à qual pertenceu e quis amplificar. Segundo Lopes, a questão vai muito além de Maquiavel, ou seja, do domínio do mando pessoal para um regime político comandado por relações institucionais, identificando o absolutismo do príncipe como uma instância de ação jurídica que passa a reconhecer como única linguagem legítima a força do rei. Assim, Hobbes despersonaliza o Estado, que se torna um regime político institucional baseado num pacto social que é um contrato irrevogável. Seu Leviatã expressa um momento decisivo no processo de secularização da política em que o Estado deixa de ser concebido como um mal necessário rumo à salvação coletiva, ideia vinda da Idade Média, para converter-se no único amparo seguro contra as paixões individuais.58

Thomas Hobbes, séc. XVII.
Figura 34. Thomas Hobbes, séc. XVII.

O Mercantilismo: o idioma econômico uniu-se ao político

No que se refere ao seu aspecto econômico, o Absolutismo funcionou baseado em um conjunto de práticas econômicas chamadas de mercantilismo, termo adotado para caracterizar um conjunto de práticas econômicas vigentes na Europa Moderna no decorrer dos séculos XVI, XVII e XVIII. Contudo, enquanto doutrina ou sistema econômico, o mercantilismo nunca existiu. Suas práticas assumiriam posturas diferentes nos diversos países que as aplicaram. O historiador Pierre Deyon, na obra Mercantismo (2001), esclarece que:

[...] o mercantilismo não constitui, nem jamais constituiu, uma doutrina social organizada com sua Bíblia, sua Igreja e seus profetas. Do século XVI ao XVIII, ninguém se declarou mercantilista, e não existe nenhuma profissão de fé que permita classificar por comparação os escritos e as práticas econômicas do tempo.59

De fato, passados mais de dois séculos desde a idealização do “sistema mercantil” por obra de A. Smith e os fisiocratas, falar em mercantilismo é uma tarefa, no mínimo, delicada. Capciosa, como qualquer generalização histórica abrangente, o conceito de mercantilismo teve seu prestígio seguidamente abalado e restaurado pela historiografia. Grosso modo, o mercantilismo pode ser compreendido como o conjunto das teorias e das práticas de intervenção econômica que se desenvolveram na Europa Moderna desde a metade do século XV, cujo o auge foram os séculos XVI e XVII, sendo caracterizado tanto por um sistema manufatureiro e agrícola quanto por uma concepção do poder estatal. Essa concepção parte do princípio de que é preciso, por um lado, um Estado forte – capaz de defender o comércio com as armas e as barreiras alfandegárias – e, por outro lado, uma empresa privada com uma estrutura comercial tanto mais ousada quanto melhor protegida. Sendo um e outra estreitamente interdependentes. Poder do Estado para defender o comércio com as armas e com as barreiras alfandegárias; comerciantes enriquecidos com a exportação de produtos acabados, o que contribuía para a acumulação de metais preciosos importados e mantinha, dentro do território nacional, a produção de alimentos. 

O prestamista e sua mulher, 1514 - o comércio se intensificou desde a Baixa Idade Média.
Figura 35. O prestamista e sua mulher, 1514 - o comércio se intensificou desde a Baixa Idade Média.

No contexto de emergência dos Estados nacionais, o internacionalismo que tinha permeado a filosofia e a prática política na Idade Média cedeu lugar à vontade de potência e outros os instrumentos da nova visão administrativa, ganhando relevo a política econômica. A adoção de práticas mercantilistas não só se tornaria o meio pelo qual alguns países acelerariam o processo de desenvolvimento capitalista, mas também seria uma importante etapa para a consolidação dos Estados modernos. Convém, portanto, observar que:

As teorias e práticas mercantilistas estão inseridas no contexto da transição do Feudalismo para o Capitalismo, possuindo ainda características marcantes das estruturas econômicas feudais e já diversos fatores que serão mais tarde identificados com características capitalistas, não sendo nenhum dos dois sistemas, no entanto. O termo mercantilismo define os aspectos econômicos desse processo de transição. Se o mercantilismo tem sua contraparte política no Estado absoluto, no campo social tem relação com a estrutura social comumente conhecida como sociedade do Antigo Regime. Ou seja, a estrutura social estamental, ainda baseada na sociedade de ordens do medievo, porém com novos elementos, dos quais a burguesia é o principal fator de diferenciação.60

Na verdade, ao defender a intervenção econômica do Estado, as práticas mercantilistas favoreceram a integração das diversas regiões do país, a proteção da moeda, o fortalecimento do mercado interno, a unificação da legislação, a organização dos produtores, a promoção de atividades agrárias e manufatureiras, o favorecimento da balança comercial, o desenvolvimento da marinha e até a criação de sistemas de comunicação, como os correios.

Por ser protecionista, o enriquecimento do Estado tornou-se prioritário, fazendo com que os interesses individuais se subordinassem aos coletivos. Na Inglaterra, por exemplo, essa política econômica teve como base o comércio através da chamada “balança de contratos” e nos “atos de navegação”. Já na França, o mercantilismo alcançou o apogeu no século XVII sob orientação de Colbert, cuja política baseava-se no fomento da indústria e do comércio.

Jean-Baptiste Colbert, 1664, ministro da economia de Luís XIV.
Figura 36. Jean-Baptiste Colbert, 1664, ministro da economia de Luís XIV.

Seja na França, Inglaterra ou Espanha, o idioma econômico uniu-se ao político nesse período. O primeiro objetivo manifesto era a defesa do Estado, não mais entendido como um fim, mas sim um meio, já que o valor supremo era a riqueza, a prosperidade, que desde então tornou-se cada vez menos ligada a uma entidade abstrata e cada vez mais ligada a uma classe: os comerciantes. Entre os vários pensadores do período a prosperidade da nação foi entendida como fruto do incremento dos fluxos comerciais e do comércio internacional. Thomas Mun (1571–1641) já defendia que o meio de aumentar a riqueza era o comércio exterior, observando a regra de sempre vender mais que comprar. Nesse contexto as relações monetárias se impõem, auxiliando em definitivo a expansão do livre capital.

Segundo Perry Anderson, o Estado absolutista e as atividades comerciais e bancárias foram as pedras angulares que conformaram o capital mercantil e determinaram o desenvolvimento inicial do capitalismo entre os séculos XV e XVIII. Por um lado, graças à ampliação dos mercados, houve uma uniformização dos preços que favoreceu a acumulação de capitais entre os produtores, enfraquecendo o capital comercial e subordinando a circulação e produção. Por outro lado, graças às políticas mercantilistas, o comércio manteve-se como uma esfera autônoma protegida pelos Estados e pelos monopólios. Segundo Anderson, o mercantilismo requereu aumentar o poder do Estado, em oposição a outros estados, por meio da exportação de mercadorias e restrição a exportação de ouro e prata. Todavia, para o autor o ponto central para a compreensão do processo foi a indistinção entre economia e sistema político na base das teorias mercantilistas.61

Absolutismo x Mercantilismo.
Figura 37. Absolutismo x Mercantilismo.



38 HESPANHA, A. M. As estruturas políticas em Portugal na Época Moderna. Lisboa: Cosmos, 2001. p. 3.

39 CHEVALLIER, Jacques. El Estado posmoderno. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2011. p. 37.

40 LOPES, M. A. O Imaginário da Realeza. Londrina: Eduel, 2012. p. 227.

41Cf. FALCON, Francisco José Calazans; RODRIGUES, Antônio Edmilson M. Tempos modernos: ensaios de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

42 Cf. KRITSCH, R. Soberania: a construção de um conceito. São Paulo: Humanitas, 2002.

43 DELUMEAU, 1984, p. 37.

44 Cf. BOBBITT, Philip. A guerra e a paz na História Moderna. Rio de Janeiro: Campus, 2003.

45 LOPES, 2012, p. 225-226

46 BONNEY, Richard. O absolutismo. Lisboa: Europa-América, 1989. p. 14.

47 KOSELLECK, R. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 10, p. 134-146, 1992.

48 LOPES, 2012, p. 223.

49 BONNEY, 1989, p. 16.

50 LOPES, 2012, p. 224.

51 Cf. HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político, Portugal - séc. XVII. Coimbra: Almedina, 1994.

52 Cf. SKINNER, Quentin. Maquiavel. Porto Alegre: L&PM, 2010.

53 LOPES, M. A. Impiedades reveladas: histórias de valores morais e políticos para exemplo e proveito dos governantes, segundo algumas lições de Maquiavel. Estudios Humanísticos. Historia, n. 11, p. 63-85, 2012. p. 72.

54 BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 235.

55 LOPES, Marcos Antônio. O absolutismo. São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 44-46.

56 LOPES, 1996, p. 25-26.

57 BURKE, Peter. A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p. 47.

58 LOPES, M. A. Hobbes e a dessacralização do absolutismo. Comunicação&política, n. s., v. X, n. 3, 2003. p. 149.

59 DEYON, P. O mercantilismo. São Paulo: Perspectiva, 2001. p. 14.

60 SILVA, K. V.; SILVA, M. H. Dicionário de conceitos históricos. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2009. p. 283.

61 ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado absolutista. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 189.

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